«Um povo que deixa o seu idioma degradar-se, aceitando todo o tipo de estrangeirismos, contributos desnecessários, em breve estará de joelhos.» Extrato do livro Milagrário Pessoal, de José Eduardo Agualusa.
A nós interessam-nos as palavras novas, disse eu. lara trabalha com neologismos. Selecciona os neologismos que devem ser dicionarizados.
Alexandre Anhanguera estremeceu, trocou um rápido olhar com Plácido Domingo.
Verdade?! Então você é uma espécie de polícia de fronteiras dos estrangeirismos? Decide que estrangeirismos podem entrar na nossa língua?
Iara corou:
Nem todos os neologismos são estrangeirismos.
Não devia deixar entrar nenhum, prosseguiu Anhanguera. A voz ganhara firmeza. Sorria, sim, mas era um sorriso um pouco torto. Eu não sou purista, não, minha fillha. Pode me chamar desconfiado. Um povo que deixa o seu idioma degradar-se, aceitando todo o tipo de estrangeirismos, contributos desnecessários, em breve estará de joelhos.
Se uma determinada palavra não for necessária, então não entra na língua, defendeu-se Iara. A língua rejeita-a, da mesma forma que o organismo expulsa um corpo estranho. Só entram as palavras de que a língua necessita.
Você acredita nisso?
Confesso que já acreditei mais, riu-se a minha jovem amiga. Seja como for, as línguas desenvolvem-se, evoluem, alimentando-se de outras. A língua portuguesa, em particular, recolheu palavras do mundo inteiro. Garoto, por exemplo, vem do francês gars; branco, do germânico blank, que também significa brilhante ou limpo. Carimbo, do quimbundo ka’rima; bule, do malaio buli; leque, do chinês lieu khieu; jangada veio de changadam, uma palavra do malaila de Malabar, na Índia, etc. Os anglicismos que o senhor tanto receia são apenas uma contribuição mais.
Anhanguera exaltou-se:
Não, não! Não são tal coisa! Essas palavras, ou palarvas, eu diria palarvas, porque a mim é o que se me afiguram, larvas nojentas se alimentando da carne do nosso idioma. Essas palarvas estão por toda a parte. Você pega num jornal, qualquer jornal, e não consegue ler uma frase inteira sem tropeçar numa delas.
(...) Não me ocorreu outra coisa senão revelar o motivo primordial que nos trouxera até ali: os neologismos mais que perfeitos.
Cf. Como as palavras surgem no português
In Milagrário Pessoal, Lisboa, D. Quixote, 2010, pp. 84-86. Título da responsabilidade do Ciberdúvidas (manteve-se a grafia da fonte utilizada)