Sobre "covfefe", forma que o presidente dos Estados Unidos da América, Donald Trump, empregou em 31/05/2017 em mais uma das suas mensagens de Twitter, interroga-se o historiador e político português José Pacheco Pereira: «[...] Ele é Presidente dos EUA e o que diz e o que escreve tem sempre enorme importância, visto que o faz com os mesmos dedinhos com que pode digitar os códigos nucleares. E se ele estiver doido?»
O presidente Trump publicou uma nota no Twitter que começa a atacar a comunicação social e depois acaba abruptamente com uma palavra que ninguém sabe o que significa, ninguém sabe como se pronuncia e ninguém sabe, sequer, se é uma palavra: “Covfefe.” Há uma explicação simples para o que aconteceu, mas com Trump não há explicações simples, só simplistas ou irracionais, ou seja, não-explicações. A explicação simples é que ele se enganou e queria escrever outra palavra qualquer e como era de noite e devia estar cansado ou adormeceu ou mandou para o éter o tweet sem o verificar e foi à sua vida, cuja eu não quero de todo saber qual foi. Erros de ortografia, lexicais e outros são comuns nos seus tweets, por isso não é novidade a falta de cuidado com que os escreve.
Acontece que, quando toda a gente se interrogava sobre o que é que significava “covfefe”, com literalmente centenas de milhares de mensagens, consultas a dicionários, procuras na Internet, e perplexidade geral, ele, de novo a horas impróprias, retirou o tweet original e substituiu-o por outro: «Quem é que é capaz de descobrir qual o verdadeiro significado de ‘covfefe’??? Divirtam-se!!» Na versão do tradutor do Google, tão apropriada na asneira que é o ideal para “traduzir” Trump, fica assim: «Quem pode descobrir o verdadeiro significado de “covore”??? Apreciar!” “Covore”? O que é “covore”? Agora já temos duas “palavras” enigmáticas. A Google está feita com o Trump.
Claro que eu me interrogo sobre quanto tempo Trump nos faz gastar para perceber o que é “covfefe”, que ele reafirma ser uma palavra com “significado” e o pobre do Sean Spicer teve de explicar que o «presidente e o seu círculo mais próximo» sabiam muito bem o que era “covfefe. Ele, apesar de ser o porta-voz do Presidente, não sabe o que é, visto que teve de fugir de cena com os gritos dos jornalistas a perguntar-lhe o que é que significava. Sim, tenho imensa sensação de tempo perdido – e de artigo perdido, visto que estou a escrever sobre isso – com este “covfefe”, que é uma espécie de gerador de patetice que nos faz também ser patetas. Mas, que raio, ou à Trump, QUE RAIO!!!, ele é Presidente dos EUA e o que diz e o que escreve tem sempre enorme importância, visto que o faz com os mesmos dedinhos com que pode digitar os códigos nucleares. E se ele estiver doido?
Há várias razões para achar que ele não está muito bem da cabeça, como, aliás, vários chefes de governo europeus e do G7 suspeitaram depois de estarem três dias metidos em salas com ele. Tiveram literalmente que aturar um homem que diz que nunca se engana, e, pior ainda, que acha que nunca se engana, que nunca é responsável pelos seus actos quando eles correm mal, que está convencido que a sua própria presença induz um magnetismo de tal ordem que o torna num “negociador” genial (parece que não resultou com o conflito israelo-palestiniano), que, pela sua mera existência, gera “acontecimentos históricos” uns atrás dos outros (“vários”, disse Spicer, aconteceram na sua recente viagem), que “acerta” em tudo com “golos” atrás uns dos outros (ele usou a linguagem do basebol, mas em “futebolês” é assim) e por aí adiante. Sabemos ainda outra coisa, no contexto do “covfefe”, que é um mago com as palavras, como ele próprio afirmou na campanha eleitoral: “Escolho sempre as melhores palavras.” Disse-o numa frase em que elogiou o poder da palavra “estúpido”. Também acho que é uma palavra poderosa.
Bom, podemos considerar que estamos perante um megalómano, mitómano, narcisista, ignorante, preguiçoso, bruto, mentiroso, amoral, desprovido de qualquer percepção de que o mundo exterior aos seus desejos existe e é de natureza distinta, ou seja, cuja relação com a realidade é quase nula, o que tem um nome bastante parecido com doido. Poder imaginar podemos. Basta ler os tweets para perceber que esta descrição é tão rigorosa como exacta e que, se pecar por alguma coisa, é por defeito, mas pode dizer-se que daí a doido vai alguma diferença. Talvez, mas esta diferença está a reduzir-se, até porque o homem se sente acossado, pelas fake news, pelas “traições” no interior da Casa Branca, pelas fugas de informação, pelo “deep state” deixado por Obama, pelas “regras” do Congresso e do Senado que o impedem de governar só com ordens executivas, pelos alemães, pelos mexicanos, pelos norte-coreanos, pelos iranianos, pelos cómicos das televisões, pelo FBI, pela CIA, pelos tribunais, pelos democratas.
São alguns marxistas os que encontram em Trump mais racionalidade, o que não deixa de ser irónico. Eles acham que Trump tem um moinho e leva a água ao seu moinho, sejam quais forem as “distracções”. O moinho são os seus interesses e os dos seus amigos bilionários que trouxe para o Governo, e os defensores desta tese na esquerda marxista vêem todas as acções de Trump como paradigmáticas do carácter selvagem do capitalismo americano, de que ele seria o principal instrumento. Há dias, como o de hoje, em que os célebres “mercados” parecem validar estas teses, dando às mais absurdas medidas de Trump a racionalidade da Bolsa. E ele corre feliz para o Twitter a escrever aqueles fabulosos auto-elogios e a citar o seu eco, a Fox News: «Wall Street atinge recordes depois de Trump sair do Acordo de Paris.» Isto implica que há quem esteja a ganhar muito dinheiro com Trump, por muito conspiratórias que sejam as teorias que explicam as suas acções. E esses não são doidos.
O problema é que o barco onde Trump navega à vista é um lugar perigoso. É-o para nós, mas é também para ele e para os que com ele vão, como os republicanos começam a perceber. É verdade que Trump tem ajudado a impulsionar a agenda mais radical da direita (a deles e a nossa), mas há uma profunda inconsistência e um impulso autodestrutivo – o melhor exemplo é o Twitter de Trump – que mantém a democracia americana debaixo de uma tensão sem precedentes. E aí Trump está a perder, como se vê em todas as sondagens, mesmo as da Fox News. A perder substantivamente em matérias em que estava a ganhar, como a segurança social e o sistema de saúde dos americanos mais pobres, muitos dos quais foram seus eleitores. E, como a criação de emprego e as melhorias económicas estão longe de lhe poderem ser atribuídas – vinham já da Administração Obama –, os efeitos destrutivos acabam por se impor quer internamente, quer num mundo em que, com excepção dos seus ditadores preferidos e dos sauditas de espada desembainhada, Trump é uma espécie de pária, tão perigoso como ridículo.
Têm a certeza que ele não se veste de Napoleão, mete a mão na jaqueta e se olha ao espelho no meio dos torcidos e tremidos dourados de Mar-a-Lago? Ou de Putin? Ou de Erdogan? Ou até desse “rapaz” Kim Jong-un, com cujo “peso” de responsabilidades juvenis ele sentiu uma genuína empatia dizendo que ficaria “honrado” em encontrar-se com ele? Eu não tenho. E já agora “covfefe” para Trump!
Artigo publicado no jornal Público em 3/06/2017.