No artigo "A praga dos neologismos" (Expresso/Única 26/7/03), preocupa-se Paulo Querido com a entrada e difusão de neologismos relacionados com a Internet. E tem razão em preocupar-se.
Os neologismos, em si mesmos, não constituem um problema e, como tal, dificilmente se podem considerar uma "praga", dado que eles são mesmo um factor de vitalidade da língua - uma língua que não apresenta neologismos é uma língua morta. Porém, se esses neologismos forem apenas palavras importadas de outras línguas (também conhecidas como estrangeirismos e empréstimos), eles carecem de uma intervenção linguística que permita a sua harmoniosa integração na língua importadora. Tal acontece especialmente quando essas palavras são importadas de línguas que possuem sistemas fonológico e morfológico distintos da palavras importadas e com convenções ortográficas bastantes divergentes, como é o caso do inglês. A entrada maciça de palavras importadas pode, no entanto, conduzir à descaracterização do idioma de acolhimento e, por outro, porque pode levar, em última instância, a que a língua que importa indiscriminadamente deixe de ser utilizada em contextos de comunicação científica e técnica, factor que pode conduzir à perda do seu estatuto de língua de ciência e de cultura.
Consciente das dificuldades em preservar a língua francesa no Quebeque, dada a situação geolinguística e política desta província, o governo do Canadá criou os meios para que o francês fosse desenvolvido e tornado apto para responder às necessidades de um mundo em constante evolução. No Quebeque instituiu-se, desde os anos 70, uma política de planificação linguística, que permitiu que o francês passasse, em poucos anos, de um estatuto de língua de comunicação quotidiana para o estatuto que actualmente tem, de língua oficial, de comunicação científica e técnica, apetrechada para ser utilizada em qualquer situação comunicativa. A este exemplo, poder-se-ia juntar o da região espanhola da Catalunha, onde a implementação de uma política de planificação linguística desde o início da década de 80 fez com que o catalão conheça hoje um fulgor e uma vitalidade que lhe permitem também ser utilizada em qualquer contexto - a título de exemplo, diga-se que toda e qualquer matéria universitária é leccionada em catalão nas universidades da Catalunha.
Não é esta a situação portuguesa. Não temos qualquer política de língua e muito menos qualquer política de planificação linguística. O que se passa a nível da CPLP é ilustrativo: pretende-se construir um espaço geopolítico, cujo principal elo de união é a língua portuguesa, mas não se vislumbra qualquer estratégia minimamente concertada para desenvolver essa língua e promover o seu uso. Carecemos também de uma instituição encarregada de proceder à normalização da língua portuguesa e, em particular, dos seus neologismos. Não temos uma Academia cujas atribuições sejam comparáveis às da Academia Francesa ou da Academia Espanhola. Além disso, carecemos, infelizmente, também, de um efectivo investimento na produção de materiais que permitam o desenvolvimento e a promoção do uso da língua portuguesa (particularmente dicionários bilingues, terminologias mono e multilingues, materiais de ensino de língua como língua estrangeira, para fins específicos, etc.) e, finalmente, carecemos de um investimento sério e programado na investigação sobre o português.
Tem, pois, razão Paulo Querido nas suas preocupações. Mas alguns aspectos da sua crítica merecem-nos reparos.
Antes de mais, importa destacar que o sítio do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa se encontra activo no endereço http://ciberduvidas.sapo.pt. Mas pelo Ciberdúvidas falarão os seus responsáveis, se assim o entenderem.
Afirma Paulo Querido no seu artigo: "Em Portugal, pura e simplesmente, não se encontra nenhuma plataforma ou iniciativa - seja política, institucional, governamental ou privada - que lance as fundações para a defesa do Português na Internet." Ora, esta afirmação não corresponde inteiramente à realidade.
A par de outras instituições, o Instituto de Linguística Teórica e Computacional - ILTEC (http://www.iltec.pt), associação sem fins lucrativos que se ocupa de investigação em Linguística, tem vindo desde há alguns anos a dedicar parte do seu esforço à realização de terminologias específicas, bem como à formação de pessoal especializado na área e à investigação sobre léxico e terminologia. Logo em 1993, um Dicionário de Termos Informáticos, bem como outras terminologias, e promoveu dois Cursos de Verão sobre terminologia, no âmbito das Conferências do Convento da Arrábida, cujos textos foram publicados no volume Terminologia: questões teóricas, métodos e projectos.
Por outro lado, a Associação de Informação Terminológica - AiT, criada em 2000 pelo ILTEC e pela Fundação da Universidade de Lisboa, tem, entre os seus objectivos, além da difusão de informação e de documentação terminológicas de língua portuguesa, a prestação de consultoria linguística e terminológica, bem como a promoção de actividades relacionadas com a terminologia. O sítio da AiT (http://www.ait.pt) contém considerável informação sobre terminologias em língua portuguesa, que é constantemente actualizada. Continua, no entanto, a sentir-se a necessidade de um organismo coordenador da actividade terminológica em Portugal.
O ILTEC e a AiT colaboraram também num Glossário Panlatino do Comércio Electrónico, projecto da Rede Panlatina de Terminologia - Realiter (http://www.realiter.net), coordenado pelo Bureau de Traduction do Canadá, e que contém 300 termos deste domínio, com equivalentes em catalão, espanhol, francês, galego, inglês, italiano, romeno e nas variedades portuguesa e brasileira do português. Esta obra encontrar-se-á disponível ainda durante 2003. Em cooperação com a empresa ahp - application & hosting provider, está também em curso na AiT a realização de um Dicionário de Termos do Comércio Electrónico, que conterá, para além de termos portugueses, definições e equivalentes em língua inglesa. Esta obra estará também disponível ainda durante 2003. Além disso, encontra-se em início de desenvolvimento um projecto de terminologia da aprendizagem electrónica (proposta de adaptação do termo e-learning), cujos resultados pretendemos disponibilizar em 2004.
É óbvio que as iniciativas anteriormente referidas são apenas uma gota de água num mar de necessidades. Também é claro que não são apenas duas instituições (que sofrem dos crónicos e já conhecidos problemas financeiros e carência de apoios), que podem contrariar toda uma situação generalizada de falta de intervenção linguística. Mas também é certo que estas iniciativas existem e, como tal, não devem ser ignoradas.
A preservação de uma língua e o seu desenvolvimento são uma tarefa colectiva. Como tal, urge levar a cabo, na sociedade portuguesa, uma discussão fundamental, da qual alguns tópicos poderão ser assim enunciados: Temos consciência efectiva do papel que a língua desempenha na afirmação de um povo? Prezamos a nossa língua? O que estamos dispostos a fazer para a preservar e desenvolver? O que é uma política de língua? Queremos ter uma política de língua? Como se põe em prática? Que podemos ganhar com ela?
Texto resposta ao artigo "A praga dos neologismos" de Paulo Querido, publicado a 26/07/2003 no caderno Única do semanário EXPRESSO, saído a 09/8/2003