Sempre que aparece uma inovação na língua, há imediatamente em Portugal quem reaja contra a mudança. Aconteceu isso violentamente no revolucionário projecto de acordo de 1986; aconteceu até com o acordo de 1990, não obstante ser muito menos inovador. E o aparecimento de um novo dicionário da Academia das Ciências de Lisboa (obra há muito esperada e extremamente necessária para uniformizar pareceres entre dicionaristas) não vai, certamente também, ficar isento de críticas.
Reconheço que o critério geral adoptado para o novo dicionário é, em linhas gerais, o que se impõe na actual explosão dos conhecimentos e na globalização acelerada da informação. Como, aliás, sempre tenho defendido em Ciberdúvidas. A língua deve enriquecer-se com novas palavras desde que estejam bem formadas, que sejam efectivamente necessárias para os conceitos pretendidos e que não empobreçam a língua (não tendam a substituir, nesses e noutros conceitos, termos vernáculos mais adequados).
Acontece, porém, que prevejo agora não só as habituais críticas dos conservadores, mas também a dificuldade de que espíritos mais modernos aceitem de bom grado algumas das soluções propostas nos estrangeirismos, se se verificar tudo o que foi indicado no citado artigo. Actualmente há uma corrente que recomenda a `não-adaptação´ de termos estrangeiros quando há o perigo de adulterar a língua de destino. Se há esse perigo e se os termos estranhos são absolutamente indispensáveis na comunicação, sem substituto válido na `língua oficial portuguesa, é preferível adoptar a grafia da língua de origem, com reserva de grifo ou de ser posta entre aspas. Acrescento ainda: com reserva também de utilização restrita.
Ora sem procurar ser exaustivo na avaliação dos termos indicados no oportuno artigo do Expresso, estranha-se já algumas das soluções adoptadas: a Academia vai propor «stande» e «stresse» como adaptação de «stand» e de «stress» (além de aceitar as variantes brasileiras estande e estresse) e propor «scâner» e «scone», como adaptação de «scanner» e do mesmo «scone».
Acontece que, se analisarmos o extenso Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, editado também pela Academia das Ciências de Lisboa, em 1940, verifica-se, nesta obra, que não há uma única palavra a começar por st ou por sc. O mesmo acontece no Vocabulário Resumido da Língua Portuguesa, igualmente da Academia, publicado em 1 970: isto é, não tem termos iniciados por st ou por sc. Por outro lado, por exemplo, o Dicionário Michaelis Inglês-Português tem 21 páginas de vocábulos iniciados por st e 8 páginas por sc.
Os responsáveis pelo Dicionário Contemporâneo, da Academia de Ciências de Lisboa, meditaram neste facto e o que pretendem é uma mudança também na estrutura actual da nossa língua? Não receiam, por exemplo, que passem a ser incluídos no léxico da língua portuguesa uma profusão de neologismos estranhos, de origem inglesa, com letras iniciais st ou sc?
Se se confirmar a solução proposta pela Academia de Ciências de Lisboa, penso que, mesmo depois de o dicionário sair, poderá haver quem prefira continuar (entre aspas) a grafar estes estrangeirismos na língua de origem, ou melhor, adoptaras soluções brasileiras. Repare-se que o mesmo Vocabulário Ortográfico, de 1940, tem cerca de 7 páginas de palavras iniciadas por est e 6 por esc (várias vindas do latim, iniciadas por st ou por sc, mas transformadas por adição, como é habitual na evolução deste tipo de palavras na nossa língua).
Como parênteses, sublinho que o artigo dessa página do Expresso, em que se refere o afecto que os irmãos brasileiros sentem pelo património comum linguístico, é extremamente gratificante para um português.
Permito-me lembrar, finalmente, que algumas imprudências excessivamente ousadas, como a aglutinação «bemaventurança» (com a eventualidade de haver futuramente retorno da grafia sobre a fonia) foram usadas pelos detractores para solapar todo o projecto de 1986.
A Academia de Ciências de Lisboa tem a incumbência de recomendar leis na língua, em Portugal. Temos a esperança de que as suas decisões serão suficientemente ponderadas, na defesa desta nossa preciosa herança social.
[Sobre esta controvérsia, cf. Reflexões acerca do Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea + O positivo e o negativo do Dicionário da Academia das Ciências de Lisboa.]
Análise de alguns dos novos termos deste dicionário, mencionados em artigo do semanário português Expresso de 18 de Novembro de 2000.