(...) A minha aflição vem de verificar que uma causa essencialmente nobre como a do Dicionário [da Língua Portuguesa Contemporânea] está agora a servir de arma de arremesso entre as versões contraditórias do presidente da Academia e do coordenador da edição, tendo por pano de fundo uma guerra surda entre estratégias editoriais. (...)
De repente, (...), rebentou nos jornais [portugueses] uma borrasca que, ao que parece, se vinha gerando desde há tempos na Academia das Ciências de Lisboa. A controvérsia envolve o muito discutido Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, vindo a público em 2001, após doze anos de duros e silenciosos trabalhos. Para recordar os leitores da importância dessa publicação, basta referir que o Dicionário veio pôr termo a uma das mais célebres «obras incompletas» em que os portugueses se especializaram, ao longo dos séculos: uma primeira versão fora iniciada ainda no século XVIII, mas detivera-se às portas da palavra “azurrar”, o que não deixou de provocar o gáudio de sucessivas gerações de portugueses. Quando eu era criança, ouvi pela primeira vez, da boca da minha irmã, a história inverosímil desta impotência lexicográfica, talvez os ecos de uma segunda tentativa, que encalhou, em finais da década de setenta, às portas da letra B. O caso do Dicionário da Academia valia como uma condenação ‘ad aeternum’ da tradicional incapacidade nacional de levar a bom porto as tarefas iniciadas; e talvez daí me tenha ficado esta mania de contrariar o triste ‘fatum’ da incompletude, contra o qual, diga-se, não sou o primeiro nem serei o último a lutar.
Ora, o dicionário publicado em 2001 tem muitas lacunas e diversas insuficiências, como seria de esperar. E, logo no ano seguinte, o seu coordenador, João Malaca Casteleiro, anunciava a necessidade de o rever, «talvez daqui a cinco anos», de forma a acolher críticas e sugestões e colmatar falhas entretanto detectadas. A tempestade que agora varre a Academia tem que ver com isto: ao que parece, não há dinheiro para a necessária revisão; em causa estão 129 000 euros de direitos de autor da primeira edição (já se venderam 35 000 exemplares), ou uma eventual edição comercial, ou nem uma coisa nem outra, mas um simples e gigantesco mal-entendido. Conclusão: não haverá nova edição antes de (na melhor das hipóteses) 2008.
Li com aflição e angústia as peças desta polémica desatada nas páginas do DN. É que eu guardo pela língua portuguesa um respeito quase místico, embora não tenha a pretensão de saber cultivá-la com absoluta justeza; e encaro os dicionários (todos) com uma supersticiosa curiosidade, talvez porque eles representam para mim o ‘thesaurus’ onde, idealmente, se deviam guardar todas as preciosidades lexicais do português falado e escrito. Na minha biblioteca, há dicionários de (quase) tudo: entre dezenas de espécimes, brilham com particular fulgor primeiras edições do praticamente inútil mas muito divertido Diccionario Poetico editado por Cândido Lusitano em 1765 e do precioso Caldas Aulête de 1881. E sobre a língua já uma vez escrevi (perdoe-se o deslize da autocitação) que «nenhum terramoto a pode abalar, nenhuma guerra lhe há-de tocar, intactas hão-de ficar as suas fundações».
É claro que nem a língua, porque é essencialmente dinâmica, justifica esta minha idolatria, nem os dicionários, muito diversos no formato, na estrutura e no âmbito, podem cumprir aquela função quase oracular de que os invisto. O próprio Dicionário da Academia suscita-me reservas, principalmente quanto ao aportuguesamento de algumas formas de origem estrangeira: não creio que alguma vez me habitue a escrever ”stresse”, “pivô” ou “ateliê”. Para evitar que os revisores me corrijam as formas originais que continuo a cultivar, tenho bom remédio: uso palavras portuguesas que as substituam, ainda que de maneira aproximativa. Quer dizer: nem o Dicionário é bordão a que me arrime sem livre arbítrio, nem as suas propostas podem ser tomadas como normativas, já que, não havendo política oficial da língua, não é a Academia que a pode estabelecer. Aqui, também, um dicionário deve ser encarado como um instrumento de trabalho, não como uma carta constitucional a quem todos devem obediência.
A minha aflição vem de verificar que uma causa essencialmente nobre como a do Dicionário está agora a servir de arma de arremesso entre as versões contraditórias do presidente da Academia e do coordenador da edição, tendo por pano de fundo uma guerra surda entre estratégias editoriais.
Não sei quem é que tem razão nesta querela de euros extraviados, nem é isso que me interessa. O que conta é que, apesar das críticas numerosas (algumas francamente idiotas) com que foi agraciado, o Dicionário da Academia é geralmente tido como a mais importante referência moderna da língua portuguesa. Por isso, angustia-me saber que, por isto ou por aquilo, o Dicionário está parado – como se a maldição do desinteresse e desleixo nacionais estivesse de novo a cobrir uma das melhores coisas que se fizeram a favor da harmonização da língua portuguesa, nas últimas décadas. Podem o Governo e a Fundação Gulbenkian, que largamente financiaram o trabalho preparatório, fazer alguma coisa quanto a isto? Ou havemos de ficar com o Dicionário tal como está, apesar de toda a gente saber que ele carece de actualização?
Cf. Sobre esta controvérsia, cf. nos Textos Relacionados (ao lado) outras opiniões sobre o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea.
Artigo publicado na revista "Visão" de 4 de Maio de 2006.