Vai para cinco anos, tive ensejo de tecer críticas de vária ordem ao infelicíssimo Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa. Diga-se desde já que, na verdade, o dicionário não resulta do trabalho aturado dos académicos em comissões ou sessões que funcionassem com esse objectivo e muito menos resulta da sedimentação desse trabalho ao longo da existência da instituição. É antes um bizarro caso de "outsourcing" cujo resultado, editado em livro, a Academia veio a subscrever com deplorável leviandade.
Devo dizer que, naquela altura, esperei houvesse reacções de enérgica reprovação da parte de gente muito mais qualificada do que eu, de gente que podia e devia tê-las tido, de modo a ser desencadeada uma imediata revisão e correcção dos inúmeros defeitos da obra. Esse era um caso de interesse público, por envolver sérias questões atinentes à defesa da língua. Mas a complacência académica, a solidariedade corporativa, o descaso institucional, a inépcia governamental, enfim, a atávica brandura dos nossos costumes, levaram a que ninguém pedisse contas à Academia pelo mau serviço prestado.
E assim nada aconteceu: que se saiba, nem os especialistas, nem as tutelas, nem os membros do Governo ligados à educação e à cultura, nem a Fundação Gulbenkian, que pagou uma boa fatia dos custos da operação, fizeram fosse o que fosse. E todavia, entre as prestações da Gulbenkian e os custos suportados pelo Estado, nomeadamente através do destacamento de investigadores e professores para a execução da tarefa, não será exagerado situar entre os dois e os três milhões de euros (uns 500 a 700 mil contos) o valor da operação…
Resumindo muito, os equívocos principais do Dicionário da Academia consistem em ele se arrogar a capacidade de traçar uma fronteira entre o português corrente e contemporâneo e tudo o mais que os seus autores entenderam arbitrariamente não se reconduzir a essa categoria. Em fazer tábua rasa de toda, repito, de toda a literatura portuguesa anterior a Almeida Garrett. Em esquecer, como autoridades da língua, toda uma série de grandes escritores portugueses e brasileiros (mesmo contemporâneos). Em omitir, pura e simplesmente, milhares de vocábulos da língua portuguesa. Em registar abonações que, por vezes, atingem as raias do ridículo. Em adaptar palavras estrangeiras de forma quase sempre desastrada. Em não permitir, numa palavra, a leitura integral da maior parte, se não da totalidade, dos autores portugueses contemporâneos e ainda menos a de qualquer autor clássico da nossa literatura. Neste aspecto, e para não falar no Aurélio ou no Houaiss, o dicionário da Academia vale muito menos do que o simples dicionário da Porto Editora…
Lamento por isso não poder concordar com a opinião de que o meu amigo António Mega Ferreira dá conta (Visão, de 4.5.2006 ), ao dizer, embora fazendo preceder a afirmação de toda uma série de reservas pessoais, que o dicionário da Academia é «geralmente tido como a mais importante referência moderna da língua portuguesa». Ninguém, no seu perfeito juízo, pode considerá-lo nesses termos. Como referência é mesmo, não a mais importante, mas a mais tacanha e medíocre. Sem contar que, com as suas limitações e omissões, o dicionário em nada prestigia a língua e a cultura portuguesas, em nada prestigia a Academia e em nada prestigia as sucessivas tutelas desta, que ficaram a assobiar para o lado em vez de reagirem com a severidade que o caso requeria…
Agora, entrou-se na discussão do destino dos meios financeiros que, ao que parece, deveriam ter servido para a revisão. Por aí, também não se chegará a lado nenhum, embora fosse curioso perceber quem é afinal o titular dos direitos de autor materiais (não me refiro aos direitos morais) de uma obra que o Estado e a Gulbenkian pagaram na íntegra.
Tenho para mim que a Academia deveria mandar retirar o seu nome da edição, porque uma instituição que se respeita a si mesma não pode subscrever uma coisa assim. E parece-me que a tutela devia cominar à Academia um prazo para apresentar um dicionário decente em vez deste abominável «pastel confuso». A fórmula é do Eça, a propósito do Camilo, mas aplica-se que nem uma luva à vetusta instituição e a tudo isto: «com o verbo completo duma raça na ponta da língua, hesita, tataranha, amontoa, retorce, embaralha e faz um pastel confuso – que nem o Diabo lhe pega, ele que pega em tudo!»
artigo publicado no jornal “Diário de Notícias” de 10 de Maio de 2006