A participação do filólogo português João Malaca Casteleiro [ver «Em defesa da Língua», em baixo] nos trabalhos do Acordo Ortográfico começou há mais de duas décadas, no Rio de Janeiro, ao lado do académico brasileiro António Houaiss. Hoje, mantém a defesa da reforma da língua portuguesa e responde com acutilância às argumentações dos adversários do acordo.
Há quem considere o Acordo Ortográfico uma preocupação mais do que secundária, até prejudicial, para os povos e para as culturas que em cada dia neles se criam. Há quem sustente que do latim saíram várias línguas e que essa foi a sua grande virtude – morrer para permitir que outras línguas vernaculares vingassem.
Outros há, como Malaca Casteleiro, que consideram essa atitude um "contra-senso", pois "se evoluir em sentido divergente em cada um dos países que agora o falam, o português perde importância a nível internacional".
Actualmente, o Acordo Ortográfico foi já ratificado pelo Brasil, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe. Nestes três países ele pode entrar em vigor de um momento para o outro. No entanto, achou-se ser prudente dar esse passo em conjunto, nos oito países que têm o português como língua oficial. É nesse momento negocial que nos encontramos, com o Brasil a pressionar as delongas portuguesas, onde o lóbi dos editores pressiona para que a entrada em vigor só seja considerada daqui a dez anos.
[Entrevista da autoria do jornalista e escritor João Melo, na revista África 21 de dezembro de 2007, conforme a norma ortográfica de 1945]
ÁFRICA21. O Acordo Ortográfico é um assunto que apaixona e divide opiniões. Não mexam na minha língua é o argumento básico. No entanto, em cada dicionário que se edita surgem novas palavras, diferentes grafias, sem que isso gere uma discussão na praça pública. O que tem este acordo ortográfico de diferente para exaltar pessoas razoáveis?
MALACA CASTELEIRO. Creio que a razão fundamental é que os adultos, habituados a escrever de uma certa maneira, têm dificuldade em mudar essa forma de escrever. Quando se aprende uma palavra nova aprendemos três coisas: o significado da palavra, a pronúncia e a sua grafia. Tanto a pronúncia como a grafia fixam-se como imagens na nossa mente. Alterar a imagem gráfica de uma palavra é sempre uma espécie de violência. As pessoas reagem negativamente contra essa imposição de mudar a sua forma de escrever, pois quando escrevemos fazemo-lo de uma forma automática, mecânica.
Quando nos surge uma dificuldade temos que ir ver ao dicionário e sabemos como isso é penoso. E há ainda outra razão mais particular. Portugal, por ser o país-berço da língua, considera-se o proprietário, o dono da língua portuguesa. Ora o maior êxito da nossa expansão pelo mundo foi a língua, que ficou implantada em oito novos países.
Mas os detractores do Acordo são geralmente pessoas com grande plasticidade linguística. A oposição não é só portuguesa. Há dias um editorialista brasileiro considerava a reforma inútil. Como se explica esta atitude?
Aí há que considerar razões de ordem pessoal, se quisermos de ordem patriótica. Mas também há razões de natureza política e económica. Há quem pense, entre os editores e livreiros, que promovendo o novo acordo ortográfico possa vir a sofrer danos económicos, em especial nos países africanos lusófonos, no pressuposto de que o Brasil vai entrar nesse mercado. Eu creio que essa visão é errada, pois desde que o Brasil queira avançar nesse caminho, não vejo como se possa impedi-lo num mundo de globalização crescente. Pretender defender o mercado livreiro pela via proteccionista da ortografia parece-me um contra-senso.
As intervenções públicas dos editores portugueses são francamente apoplécticas para com o futuro da língua se houver Acordo. Embora algo contraditórios, pois ao mesmo tempo que afirmam que um horizonte de dez anos é insuficiente, garantem que têm condições técnicas para renovar por inteiro os fundos editoriais em menos de quatro anos. Esta atitude é meramente interesseira?
Creio que há dois níveis nesta discussão: o da praça pública e o privado, no interior dos interesses dos editores. Não estou certo da apregoada unanimidade entre os editores e livreiros a este propósito. É naturalmente um problema que se vai traduzir em alterações ao nível da edição do livro. Mas é bom que se diga que, neste caso, os únicos que vão ser afectados são os livros escolares, os dicionários e as gramáticas. Quanto à restante edição, convém reparar que nós ainda hoje lemos as primeiras edições de Camilo Castelo Branco, Júlio Dinis, Eça de Queirós, que não estão em correspondência com a regra ortográfica actual. O leitor compreende perfeitamente o que lá está escrito.
«Em 1911, Portugal promoveu uma reforma ortográfica à revelia do Brasil»
Num colóquio em Bragança acentuou que "é maior do que a guerra dos cem anos". Mas qual é a natureza desta guerra, qual é a crise política que lhe está subjacente?
Desde 1911 que andamos nisto. Houve um erro crasso cometido em 1911. Portugal promoveu uma reforma ortográfica à revelia do Brasil, ignorando que era o outro grande país da língua portuguesa.
Ora a reforma ortográfica tem que ser promulgada através de uma lei que implica um acto de soberania. Com a decisão de 1911 quis impor-se a um outro país um acto de soberania emanado da nossa parte. Foi um contra-senso, que se teria evitado se houvesse o cuidado de convidar o Brasil a aderir a essa reforma e que ela se fizesse em consonância. Assim não se fez e a partir daí começou a pairar a ideia de uma desunião entre Portugal e o Brasil a esse propósito. Fizeram-se várias tentativas para sarar o diferendo, em 1931, em 1943, em 1945, em 1971 e 73, em 1986 e, agora, em 1990. Ao longo de todo o século XX arrastou-se esta questão, com a sensação permanente de que tem que se resolver a questão a bem da língua portuguesa. Porque é justamente no último quartel do século XX, com a independência das ex-colónias africanas, que o português ganha maior importância.
Não há o risco de outros arranhões com o aparecimento de novos países soberanos?
Este tipo de debates sobre a língua não é exclusivo nosso. Houve um semelhante em França na década de 1990, quando se quis levar a cabo uma reforma ortográfica. Foi preciso dar um prazo de transição muito longo. As pessoas oferecem grande resistência em alterar a maneira como escrevem, mesmo que as diferenças sejam mínimas, como é o caso. As alterações que se propõem ao acordo não chegam a dois por cento do léxico da língua. Nessas alturas as pessoas esquecem-se que ao longo da história da língua houve evolução da grafia. Já se escreveu fructo, victoria, pharmacia e por aí fora. Os nomes próprios com consoante dupla, como Mello, eram habituais e houve entretanto alterações que todos aceitámos.
As modificações propostas no acordo devem alterar 1,6 por cento do vocabulário em Portugal e 0,45 por cento no Brasil. Como é que se chegou a esses números?
Nós fizemos no decorrer das conversações para o Acordo de 1990, que foi muito mais exigente do que o de 1986, uma longa investigação. No levantamento das cem mil palavras que fizemos através das entradas lexicais nos dicionários, chegámos a essa conclusão estatística. Foi uma investigação desenvolvida no âmbito da Academia das Ciências [portuguesa].
O regresso das letras k, w e y
O editorialista brasileiro Sérgio Duarte da Silva [Globo 1/12/07], adversário do Acordo, diz que "Até o santo nome do mestre Antônio Houaiss foi usado". Houaiss foi ou não um dos arquitectos do Acordo?
Houaiss foi o promotor, por incumbência do então Presidente da República do Brasil, José Sarney, da primeira reunião de delegações de todos os países de língua portuguesa, que se realizou no Rio de Janeiro, em Maio de 1986, para levar a cabo o acordo ortográfico. Ele foi o grande promotor dessa reunião e o Acordo de 1986, que levantou tanta polémica, deve-se à sua persistência. E esteve também ligado às conversações que desembocaram no Acordo de 1990. Foi ele quem contactou com os países africanos de língua portuguesa.
No Brasil por necessidade de alfabetização tinham suprimido as consoantes mudas não articuladas em palavras como director, óptimo, acção. E fizeram-no por facilidade de educação. Uma criança que aprende a escrever tem tendência a escrever ação, ótimo, porque à outra grafia só lá chega por memorização, por repetição.
Qual foi a metodologia desta reforma, iniciada em 1986? Os critérios que a orientaram são os mesmos que presidem a este Acordo?
Em 1986, a reunião foi promovida no seio da Academia Brasileira de Letras, por António Houaiss e por incumbência do Presidente José Sarney, que também era académico. A versão do acordo ortográfico analisada nessa reunião do Rio de Janeiro, em Maio de 1986, partiu da base preparada por Houaiss. Foi sobre ela que as delegações dos vários países trabalharam. Foram dois dias de reunião, durante os quais analisámos o projecto, introduziram-se algumas alterações, com a participação de todas as delegações, devidamente mandatadas pelos Governos dos respectivos países.
Na grande maioria os critérios de 1986 mantiveram-se. O que fizemos em 1990 foi a investigação exaustiva à totalidade possível do léxico da língua. Procedemos a vários estudos, vimos as várias possibilidades, as várias implicações. A partir da parte portuguesa, representada pela Academia das Ciências, preparámos um texto para uma reunião de delegações de todos os países, em Outubro de 1990, na qual o Brasil foi representado através da sua Academia de Letras. Esse texto sistematiza melhor o elenco das bases, reduzimos o seu número, introduzimos, logo na primeira base, o alfabeto ortográfico, no qual incluímos as letras k, w, y que já figuram nos dicionários há mais de um século. Daí ser um artifício dizer que o alfabeto português tem 23 letras, na realidade tem 26.
Toda a estrutura do Acordo Ortográfico de 1990 foi vista a partir do de 1986, no sentido de o sistematizar e tornar mais claro. Sem pretender torná-lo absoluto. Tudo o mais é desinformação.
O Acordo Ortográfico mereceu comentários finais dos ministros Luís Amado e Celso Amorim no sentido de proceder à ratificação do acordo até ao fim do ano. No entanto, a ministra portuguesa da Cultura veio dizer que a sua efectivação só seria possível num horizonte de dez anos. É preciso esperar a renovação de gerações?
Creio que a ministra da Cultura não terá querido dizer bem isso. Penso que o que terá querido dizer é que o Acordo vai ser ratificado e entrará em aplicação, mas com um período de tempo de transição de dez anos. Não acredito que, ratificado o Acordo, os editores e livreiros fiquem dez anos à espera para o aplicar às suas publicações. Estou absolutamente convicto de que eles não vão ficar à espera. Logo que esteja ratificado, os editores, que tantos protestam, vão aplicá-lo o mais rapidamente possível. Aí é que é preciso algum cuidado do ponto de vista escolar, com os professores a ponderar sobre as alterações introduzidas. Mas deve ficar claro que, logo que haja Acordo, as crianças que iniciam a sua escolarização devem já aprender segundo as regras do novo Acordo Ortográfico.
Aceito perfeitamente que haja um lapso de tempo - se quiserem, que seja de dez anos - para que entre totalmente em vigor.
Há outra abordagem. Não podemos vir a ter várias línguas de étimo português, tal como aconteceu com o latim?
Eu desejava que isso não acontecesse e tenho alguns argumentos para justificar a minha posição. O latim expandiu-se pela România numa altura em que as comunicações eram difíceis, os povos viviam isolados e as influências de substrato, ou seja as várias línguas que já falavam, eram enormes. Portanto, o latim fragmentou-se. Hoje vivemos num mundo de globalização onde as comunicações são fáceis e múltiplas. Até se fala do mundo como de uma aldeia global. A educação e a alfabetização estão hoje muito mais desenvolvidas. Desde que haja uma boa aprendizagem da língua nas escolas a fragmentação não me parece viável. Acho admissíveis as diversidades de pronúncia - em Lisboa de uma maneira, em Ponta Delgada de outra e no Brasil ainda de outra. Mas a comunicação permanece inteligível. É certo que do nosso lado é mais fácil compreender o falante brasileiro, pois ele não come as vogais átonas, como nós. Já dizia o Prof. Hernâni Cidade que somos vocalófolos. Por exemplo, pronunciamos mnin, fica só a vogal tónica, as outras desaparecem, enquanto no Brasil diz-se mênino, o que torna o idioma bem mais compreensível.
Se há aqui uma questão política quem pode resolvê-la?
Os Governos. Os linguistas, os filólogos dão a sua contribuição, mas no final tem que haver uma decisão que seja impositiva. Até ao século XX, em que o universo dos alfabetizados era reduzido, pôde viver-se sem um Acordo, cada escritor respeitava mais ou menos o que outros praticavam e exerciam uma influência pessoal para melhorar a grafia da escrita portuguesa. Do que resultava, necessariamente, muita incongruência. Foi então, no princípio do século XX, que um conjunto eminente de filólogos tomou a peito levar a cabo uma reforma ortográfica. Foi o esforço de Gonçalves Viana, Leite de Vasconcelos, Carolina Michaëlis de Vasconcelos e outros.
Mas quando se chega ao extremo de fazer duas actas das reuniões da CPLP em duas versões, a de Portugal e a do Brasil, não é um impasse político?
É uma atitude politicamente inaceitável. Qualquer que seja a forma de escrever na grafia luso-africana ou na luso-brasileira, um e o outro lado lê perfeitamente e compreende uma e outra. Mas essa atitude é reveladora desta divergência ainda não resolvida.
Qual é a sua expectativa quanto ao desfecho desta divergência?
Tenho a firme convicção de que o Acordo, uma vez que seja ratificado, o que é uma decisão política, que implica um acto soberano, para lá de uma ou outra reacção, dentro de dois/três anos entra efectivamente em vigor.
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Em defesa da língua portuguesa
João Malaca Casteleiro nasceu em Agosto de 1936 no Teixoso, uma próspera freguesia da Covilhã, na região centro de Portugal. A filologia românica foi desde sempre a sua vocação, e, em 1969, entrou na Faculdade de Letras, como assistente convidado do Prof. Jacinto do Prado Coelho.
Assumiu a cátedra em 1979 e nesse mesmo ano foi recebido na Academia de Ciências de Lisboa.
A sua participação no acordo ortográfico do português iniciou-se em 1986, quando foi convidado a fazer parte da delegação portuguesa que no Rio de Janeiro estabeleceu as primeiras bases do acordo.
Em 1990, foi encarregado de retomar as conversações para que se adoptassem as regras comuns à grafia do português falado. A 16 de Dezembro de 1990, esse esforço foi reconhecido com a aprovação do Acordo, em cerimónia que se desenrolou em Lisboa, no Palácio da Ajuda, na presença das delegações governamentais dos sete Estados, uma vez que nessa altura ainda não existia o de Timor-Leste.
O passo seguinte devia ser o da ratificação pelos parlamentos dos respectivos países e é nesse intermezzo que ainda nos encontramos.
Em 2000, realizou uma obra de grande fôlego, que foi também um passo para a concretização prática do acordo - a coordenação do Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa (Ed. Verbo), onde se actualiza o léxico da língua na sua vertente brasileira e luso-africana.
Jubilou-se em 1976 e dirige, desde 1999, o Centro de Avaliação de Português de Língua Estrangeira (CALPE). É função deste Centro certificar a qualidade do ensino do português como língua estrangeira. Com essa finalidade é o autor dos cadernos intitulados Aprender Português, que vão no terceiro volume.
N.E. – Desde cedo, os jornais da época noticiaram e comentaram esta primeira iniciativa de normalização e simplificação da escrita da língua portuguesa. Por aí pode acompanhar-se a preparação de impressores e tipógrafos para receber a reforma em vigor desde 1911; por aí perpassa o terçar de armas a favor de e contra, que chegou a ser impugnado por petição coletiva; e por aí se percebe que a liça em torno do mais recente Acordo Ortográfico de 1990 é o regressar de uma velha questão do princípio do século XX, em que entraram nomes como José Correia Nobre de França, Alexandre Fontes, Henrique Brunswick e os dos filólogos Aniceto dos Reis Gonçalves Viana e Cândido de Figueiredo, que assinaram cartas em Diário de Notícias e n' O Seculo. Intitulada “A Questão Ortográfica", Gonçalves Viana, relator da Comissão Oficial da reforma ortográfica de 1911, dirigiu uma a carta Rodolf Horner e uma outra a Cândido de Figueiredo (“A reforma ortográfica").
Cf. João Malaca Casteleiro (1936-2020)
Entrevista publicada na revista África 21 de dezembro de 2007, escrita segundo a norma ortográfica de 1945.