«Escreve-se sem alma nem raízes, longe da coisa salamim e enrolados em vazios como "implementação" e "modus operandi" […] — mas sufoca-se com o "p" mudo perdido.» Crónica do autor na sua coluna diária, Um Ponto É Tudo, do Diário de Notícias de 20/02/2012.
Um luandense escreve de forma lenta e esforçada: «Çapato». Outro luandense lê e espanta-se: «Quê? Sapato com c de cedilha?!» O primeiro relê-se, hesita, mas logo contra-ataca, varrendo o espanto do outro: «E você leste bota?...» A fala que a minha cidade natal dá à minha língua, usando-a de forma saboreada e gozada, tem paralelo com a escrita que os brasileiros praticam, por exemplo entre os seus magníficos cronistas.
A essas duas formas de usar o português, imaginativas, apropriadoras, piscando os olhos com os lábios, eu sei que não abuso quando as comparo com a língua substantiva dos camponeses transmontanos. Em 1975, quando Portugal fervilhava, Lisboa mandou estudantes universitários, então em parênteses com farda, catequizar aquelas bandas. Numa aldeia, um jovem oficial miliciano subiu ao Unimog, cercado de povo, e falou como sabia, oco: «Vocês sabem o que é o socialismo?» Ao que uma camponesa respondeu: «E vocemecê sabe o que é o salamim?» Eu, que não sabia o que era o salamim e do socialismo só julgava saber, tenho essa história demasiado presente quando leio os jornais portugueses a debater o Acordo Ortográfico.
Escreve-se sem alma nem raízes, longe da coisa salamim e enrolados em vazios como "implementação" e "modus operandi" – os jornais não se leem porque são escritos sobre Unimogs — mas sufoca-se com o "p" mudo perdido. Prefiro o luandense do "çapato" e os erros de concordância de Nelson Rodrigues.
In Diário de Notícias de 20 de fevereiro de 2012