A ideia-feita – veiculada recorrentemente na imprensa portuguesa – de o Brasil já «não estar interessado em que a nova ortografia seja lei» foi pretexto para esta carta do autor, publicada no semanário Expresso de 11 de janeiro de 2014. Segue-se a versão integral.
No jornal Expresso de 4 de janeiro [de 2014], num conjunto de “previsões” para 2014 (“Cem perguntas para 2014”) , lê-se a páginas 8 textualmente o seguinte:
«Apesar de este ano a discussão em torno do Acordo Ortográfico ter abrandado, a sua entrada em vigor nunca esteve tão longe. O Brasil, o principal interessado no AO, acaba de o pôr em causa em pleno Senado, que diz não estar interessado em que a nova ortografia seja lei.»
A afirmação é pouco compreensível num jornal que já aplica integralmente a nova ortografia, precisamente porque o Acordo Ortográfico se encontra em vigor, tanto em Portugal, como no Brasil. A redação da previsão deveria ser exatamente a contrária. Ou seja, o AO nunca esteve tão longe de não ser aplicado.
Aparentemente, a previsão fundamenta-se em dados surgidos recentemente na imprensa e a que alguns adversários do Acordo Ortográfico (AO), de ambos os lados do Atlântico, deram acolhimento, afastando-se da verdade factual. Ora, para esclarecimento cabal dos leitores do Expresso, seria bom que os factos relativos ao AO fossem devidamente clarificados. Assim:
Estiveram recentemente em Portugal dois professores brasileiros adversários do AO. São dois cidadãos individuais, ligados a iniciativas privadas (sobretudo do ensino), que foram ouvidos por uma comissão no Senado brasileiro no âmbito de uma proposta, de que são autores, de revisão radical da ortografia do português. No entanto, nem o Senado brasileiro se pronunciou, como um todo, contra ou a favor do AO, nem o Senado poderia vincular ou desvincular o Brasil de um tratado internacional, ratificado e em vigor, como o AO. É, pois, completamente falso o que se afirma quando se diz que «o Brasil (...) diz não estar interessado em que a nova ortografia seja lei».
Na verdade, o AO já é “lei” no Brasil (Decreto n.º 6583, de 29 de setembro de 2008, disponível [aqui), estando naquele país a decorrer o período de transição, como em Portugal. A chefe de Estado do Brasil, Dilma Rousseff, prolongou esse período de transição, declarando que tal iniciativa, de resto, permite fazer coincidir a data de plena aplicação do AO no Brasil com a de Portugal (2015). A clarificação dessa intenção foi feita diversas vezes por responsáveis brasileiros, nomeadamente pelo próprio embaixador do Brasil em Portugal, através da imprensa escrita, ainda recentemente e na carta que enviou aos deputados portugueses, em setembro, p.p. Em suma, contrariamente ao que tem vindo a ser afirmado por alguns opositores ao AO, o Brasil não suspendeu a aplicação do AO nem anunciou qualquer intenção de o vir a fazer; pelo contrário, tem-se demonstrado empenhado na sua plena aplicação em todo o espaço da CPLP.
No Brasil, o AO está em vigor e aplicação desde 2009, tal como em Portugal, sendo obrigatório o seu uso nas instituições e concursos públicos, incluindo em todos os níveis do sistema de ensino, e sendo essa aplicação acompanhada pela totalidade ou quase totalidade das editoras, dos meios de comunicação social e por um gradualmente alargado número de cidadãos individuais. Tal como em Portugal (onde, desde o início do ano, com a adoção da nova grafia pela Vodafone, as três operadoras a aplicam, já, conjuntamente).
Todos os Estados-membros da CPLP assinaram o AO. Apenas dois não o ratificaram ainda, afirmando reiteradamente, porém, a sua intenção de o fazer logo que disponham de meios técnicos para tal. Nesse sentido, têm sido conduzidos estudos e adotadas medidas para aplicação do AO nesses mesmos países, como os representantes de cada um deles puderam detalhar na recente "Conferência Internacional sobre o Futuro da Língua Portuguesa no Sistema Mundial”, realizada em Lisboa em outubro passado, com organização do Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal, por via do Instituto Camões.
(...)
N. E. - Esclareça-se que os «dois professores brasileiros» mencionados nesta carta são Ernani Pimentel e Pasquale Cipro Neto e que estes não se deslocaram a Portugal de motu proprio: na verdade, são coordenadores de um grupo de trabalho constituído em 1/10/2013 pela Comissão de Educação, Cultura e Esporte do Senado Federal brasileiro para «propor a simplificação e o aperfeiçoamento do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa» (Portal de Notícias/Senado Federal). Acrescente-se que Ernani Pimentel, que considera «que o Acordo já nasceu arcaico», é o fundador do movimento Acordar Melhor, que «visa a propor uma simplificação na ortografia para que todos a dominem e se libertem de dicionários e manuais», conforme se pode ler na página eletrónica respetiva. De qualquer modo, repita-se que não cabe ao Senado Federal suspender o processo de aplicação Acordo Ortográfico de 1990 em curso no Brasil desde 2009, conforme fica claro leitura do própio Portal de Notícias/Senado Federal: «A intenção [do grupo de trabalho] é apresentar, até março de 2015, uma proposta à Comissão de Educação, Cultura e Esporte (CE). O texto, então, será levado ao Executivo, que poderá discutir as mudanças com os outros países de Língua Portuguesa.» Haja mudanças ou não, elas não alteram o que, reiteramente, tem sido afirmado pelo Governo brasileiro sobre a vigência do Acordo Ortográfico no país (cf. O Brasil e o Acordo Ortográfico + Carta do embaixador do Brasil aos deputados portugueses + Os falsos argumentos de direito contra o Acordo Ortográfico) + Extremistas com e sem h).
carta publicada no semanário “Expresso” de 11 de janeiro de 2014