Nem o Livro de Estilo do "Público" é autoridade nessa matéria (basta ver as incoerências que por lá há nesse capítulo da grafia dos topónimos estrangeiros), nem me parece aceitável invocarmos o argumento da comunicação social. Desde quando o que se vai escrevendo nos jornais e ouvindo na rádio e na televisão prevalece como exemplo-padrão?
Então teríamos de aceitar todos os demais erros de escrita ou de pronúncia ilustrativos do mau uso da sua própria língua, por parte dos jornalistas (e não só)... Por exemplo, como eles escrevem, e dizem, e repetem, «tragédia "humanitária"», «dia "solarengo"», "organigrama", "despoletar", Sri Lanka (qualquer prontuário regista a forma portuguesa Sri Lanca), Al-Qaeda, /"mídia"/, /"maremôto"/ e /"terramôto"/, /"cadávres"/, e /"lidres"/, e /"repórtres"/, e etc., e etc., e etc. – repito, como eles escrevem, e dizem, e repetem, esses e outros disparates, quem preza a língua portuguesa vai também dizê-los e escrevê-los?
Samatra é como se regista nos mais completos prontuários da língua portuguesa, como é o caso do de D'Silvas Filho. É assim que sempre se escreveu em Portugal, é assim que vem no Vocabulário da Língua Portuguesa, de Rebelo Gonçalves (obra, essa, sim, de referência na matéria), como grafia recomendada.
Quanto à questão de fundo, para além da reafirmação do que já temos em linha, e há muito, aqui no Ciberdúvidas – vide, por exemplo, Sumatra ou Samatra? + Uma Samatra de cinco séculos –, resta-me só transcrever o que sobre esta e outras «palavras de torna-viagem» foi publicado em livro (edição da Sociedade da Língua Portuguesa) das memoráveis Charlas Linguísticas de Raul Machado – esse, sim, outra autoridade na matéria –, proferidas na RTP, já lá vão mais de quatro décadas:
«(…) Em Portugal, houve tempos em que se pretendeu implantar a forma railes, pronunciada à francesa, para dizer carris; mas, felizmente, a moda não se fixou. Todavia, há anos, muitas vezes ouvi falar dos "railes" do caminho-de-ferro.
Mantivemo-nos fixos nos carris e não descarrilámos.
A estas palavras que emigram de um país para o outro, que se adaptam ao novo ambiente, que vestem estranhas roupagens e, depois, volvidos anos, regressam, com figurino insólito, à pátria que lhes dera forma e vida… dá-se a alcunha de palavras de “torna-viagem”: são palavras de ida e volta, transformadas, transfiguradas, mascaradas nos dois sentidos, quando partem e lá chegam, quando regressam e cá desembarcam.
Nós em Portugal encontramos e possuímos igualmente algumas palavras de “torna-viagem”, palavras de ida e volta. Anotemos ao de leve alguns exemplos de palavras exportadas, e observemos desde já que, ao regressarem com indumentária estrangeira e se fixarem alguns anos na língua portuguesa, foram depois, com toda a razão e louvor, despojadas das suas vestes estranhas e vestidas de novo com as galas nacionais.
Em primeiro lugar, Samatra. Trouxemos nós do Oriente, com as especiarias, o nome da ilha de Samatra. Entre nós tomou viço e louçania, em livros e escritos de língua portuguesa.
Depois, os ingleses, que andavam então na nossa peugada e seguiam os nossos vestígios, acolheram a palavra e, para a adaptarem e pronunciarem – honra lhes seja! –, à sua maneira, escreveram a primeira sílaba Su, para darem o som de Sa-matra.
Rolaram anos no dobrar dos séculos. Portugal, sem já se lembrar de que havia cá na nossa terra a palavra Samatra, começou a folhear livros, revistas e monografias inglesas, e descobriu o nome da ilha de Sumatra. Era palavra de «torna-viagem» que regressava à terra de origem. E durante anos só se conhecia cá em Portugal o termo inglês.
Deu-se, porém, reacção meritória, rejeitou-se a Sumatra anglicizada e voltou à primeira origem com a forma, actualmente usada, como a antiga,Samatra.
Do Oriente trouxemos outrossim a palavra com que baptizámos umas ilhas longínquas: as Malucas. Também os ingleses grafaram na sua língua, para se adaptarem à pronúncia portuguesa, com a forma Molucas. Mais uma vez os portugueses a viram na língua inglesa, acharam-na original e trouxeram-na. Nos nossos escritos e livros se pavoneou durante anos, na sua torna-viagem, mas, ainda bem, já se vestiu de novo à moda antiga e portuguesa – Malucas.
Mais repercussão no aspecto linguístico teve a palavra francesa fétiche, com o seu derivado fétichisme. Livros, tratados de história das religiões, manuais de filosofia, revistas coloniais, difundiam a esmo o fétiche e até em discursos de oratória empolada e comicieira se lançavam ao ar, como foguetes que se desfazem num estoiro e num borrão de fumo, frases deste teor: que fulano é um fétiche, que os seus partidários são fétichistas, que tudo é produto e resultado de fetichismo.
Afinal, o fétiche com os seus aderentes é palavra de «torna-viagem», tomada pelo francês à língua portuguesa.
Viram os franceses a palavra lusa feitiço, com feiticeiro e feitiçaria, importaram-na para os seus livros, tratados, monografias e histórias das religiões, e serviram-se dela com profusão, sob as formas adaptadas fétiche e fétichisme. Era palavra da moda filosófica e da oratória. Como tal, os portugueses, atentos à moda de então, trouxeram-na, vestida à parisiense, e usaram-na como roupagem elegante. Apareceu mesmo, em vocabulários e dicionários, como termo genuíno da língua portuguesa.
Por fim, desde há uns anos, foi repudiada essa palavra adulterada, de «torna-viagem», para se implantarem de novo os termos nacionais, feitiço, feiticeiro, feitiçaria...
Ao menos temos isto de bom: protestamos e reagimos contra a adulteração despropositada de algumas palavras nossas.
Caso mais recente deu-se com a palavra Florida Nome geográfico, no Sul dos Estados Unidos da América, foi-lhe imposto pelos espanhóis, por ser região florida e, sobretudo, por ser descoberta por ocasião da Páscoa florida, a nossa Páscoa, que em Espanha se contrapõe à Páscoa de Navidad, o nosso Natal.
Nós, que andámos também naquelas andanças e naquelas paragens, chamámos-lhe igualmente a Florida.
Os nossos autores clássicos empregam para a Páscoa da Ressurreição, como em espanhol, a designação de Páscoa florida.
A Florida, não há dúvida, era o termo genuíno e castiço de carácter geográfico para indicar aquela península espanhola, que foi espanhola até ao século passado [século XIX], situada no Sul da América do Norte.
Depois de que os americanos se assenhorearam daquela região e dela fizeram mais um estado da sua União, como não lhe sabiam pronunciar bem o nome à espanhola, começaram a chamar-lhe, no sotaque da língua inglesa, Flôrida (Flórida). Em Espanha e em toda a língua espanhola não se ligou importância à toada inglesa da palavra; e manteve-se persistentemente a pronúncia Florida (-rí-). Lojas e locandas de venda, hotéis e restaurantes, marcas de produtos, ostentam, em tabuletas e etiquetas, bem claro o nome La Florida, em recordação constante daquela península que fora do domínio espanhol.
Mas em Portugal, obliterados o conhecimento e a origem do termo hispano-luso, pegámos na Flôrida anglo-americana e introduzimo-la, mais ou menos inglesada, sob a forma Flórida, na língua portuguesa. Cá está ela de regresso, em «torna-viagem», a nossa bela Florida (-rí-). A Flórida, como viajante e turista americano, andou a passear em Portugal, em livros, revistas, compêndios de geografia e mapas de regiões coloridas... De tal maneira se ia enraizando e implantando, no solo pátrio, a flor exótica, que até as pessoas cultas receavam pronunciar bem a palavra Florida, e diziam, a medo, Flórida.
Há casos destes com outras palavras em que as pessoas cultas não pronunciam bem certas formas linguísticas com pavor de que as acoimem de ignorantes. Mas, como acontecera já com a Sumatra, com as Molucas, com o fétiche, ergueu-se também o tolle, que se vai tornando geral, contra a Flórida: os bons tratadistas e especialistas apontam razões e anotam vincadamente que é Florida, e não Flórida.
(...)»