DÚVIDAS

O significado de um/uma numa enumeração

Há muito que às vezes me deparo com enumerações em que não me parece confortável dar aos termos o mesmo tratamento no que diz respeito ao uso dos artigos. Peço licença de dar um exemplo bastante simplório para mostrar o que gera minha dúvida:

«Ontem, não dormi, fui incomodado por mosquitos, aranhas e uma barata.»

No exemplo, mosquitos e aranhas não recebem artigo nem definido nem indefinido. Já barata, essa, sim, recebe o indefinido. Nenhuma outra redação me parece satisfatória nesse tipo de situação, pois se disser «por uns mosquitos, por umas aranhas e por uma barata» fico com a impressão de diminuir a vagueza quanto a mosquitos e aranhas. Se disser «por mosquitos, aranhas e barata», pensando bem, não encontro problemas maiores, embora sinta (talvez por cacoete) a falta do artigo indefinido diante do único item no singular.

Assim, tomo a liberdade de perguntar qual seria a melhor solução em casos assim de acordo com um estilo de escrever atento ao paralelismo nas construções.

Muito obrigado desde já!

Resposta

O caso apresentado terá de ser equacionado sobretudo no campo dos valores associados às escolhas feitas pelo falante.

Em enumerações, é comum (e admissível) a omissão do artigo indefinido. Veja-se o exemplo apresentando em (1):

(1) «Na casa encontrei livros, revistas, jornais e ensaios.»

Na frase, é feita a enumeração de um conjunto de entidades, expressas por nomes contáveis e que se encontram no plural. Conclui-se assim que, com um nome contável no plural, pode optar-se pela construção sem artigo indefinido, obtendo-se uma interpretação indefinida. Aos sintagmas coordenados «jornais, romances, revistas, gramáticas, ensaios» é associada uma leitura de quantidade indeterminada, que é comum a todas as realidades referidas.

Se, na frase, se combinar um artigo indefinido com um dos nomes, é possível obter um efeito de contraste entre o valor não específico e o valor específico. Observemos a frase:

(2) «Na casa encontrei livros, revistas, jornais e uns ensaios.»

Com esta frase, é possível associar ao constituinte «livros, revistas, jornais» um valor não específico, ou seja, são referidos seres da espécie indicada numa quantidade indeterminada. Ao sintagma «uns ensaios» pode ser associado um valor [±específico], que indica que o falante tem em mente ensaios específicos, ainda que não os identifique.

No caso da frase apresentada, aqui retomada em (3), a situação pode ser interpretada também pelo contraste indefinido / definido, sendo atribuído a «mosquitos, aranhas» um valor indefinido (no sentido em que se referem elementos destas classes em quantidade indeterminada). Já a «uma barata» pode ser associado um valor definido: o falante tem em mente uma barata específica, que não identifica. Esta leitura afigura-se, todavia, um pouco estranha, na medida em que só funcionaria num universo onde o falante tivesse, por exemplo, baratas como animais de estimação e as conseguisse identificar. Por esta razão, parece-nos preferível adotar a leitura de «um» como numeral. Desta forma, estabelece-se o contraste entre a quantidade indefinida associada a «mosquitos, aranhas» e a quantidade definida presente em «uma barata» (que poderia também corresponder a «duas/ três baratas»).

(3) «Ontem, não dormi, fui incomodado por mosquitos, aranhas e uma barata.»

Em síntese, a opção pelo uso (ou a omissão) de artigo indefinido numa enumeração pode estar associada a leituras relacionadas com os referidos valores específico/não específico. Note-se, porém, que nem todos os falantes são sensíveis a este valor de oposição (uma situação referida, por exemplo, na Gramática do Português1). Também não nos é possível aferir se no português do Brasil este contraste funciona.

Disponha sempre!

 

1. Para aprofundar esta questão, cf. Miguel e Raposo in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 853-859.

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