Como continua a haver vozes a preferir a variante inglesa Sumatra ao nosso vernáculo de quase cinco séculos Samatra, transcrevemos com a devida vénia os seguintes três textos insertos na página do Clube de Jornalistas portugueses:
1. Palavras "torna-viagem"
«É uma daquelas palavras de "torna-viagem", como lhe chamou o sempre recordado padre Raul Machado nas suas saborosas Charlas Linguísticas nos idos anos 60 do século passado, na RTP. Tal como Florida ou "mídia", como parece ser agora de bom-tom (?) pronunciar à inglesa o que sempre foi de fonética portuguesa.
Na SIC, sabe-se, até já houve uma orientação directiva para que o nome da ilha onde se deu o epicentro do sismo(1) que desencadeou a devastação em oito países do Sudeste Asiático e na costa oriental africana do Índico se dissesse... à inglesa. Exactamente com esse peregrino argumento: como as Sky News inglesas e as "news" americanas dizem Sumatra, e como o que se diz na língua da globalização dominante é o que conta, atiremos fora de borda o que há séculos estava consagrado na nossa língua; porque ... "é já domínio público" (sic, SIC).
Obviamente que não é de "domínio público" nenhum, mas, tão-só, de quem ignora que a ilha mártir indonésia se chama, e sempre se chamou, Samatra . Era esse, e assim escrito, o nome que os navegadores portugueses lhe puseram desde que aí aportaram em 1509. Os ingleses e os americanos, que lá chegaram um bom par de séculos depois, chamando-lhes na mesma Samatra, para dizerem em inglês aquele primeiro "a", transcrevem-no foneticamente para "u".
É, de resto, a mesma coisa que se passa com a palavra Al-Qaeda. Como a regra é a pronúncia o mais aproximada do original em árabe, a pronúncia é "Alcaida", com aquele "ai" meio gutural, a transliteração em inglês daquele som em "i" é o "e". Ou seja, é um erro, como se ouve por aí no audiovisual português, dizer-se "Alcaéda".
Mas voltemos ao nome Samatra e à lição de Raul Machado, há quase meio século: "Trouxemos nós do Oriente, com as especiarias, o nome da ilha de Samatra. Entre nós tomou viço e louçania, em livros e escrito de língua portuguesa.
Depois, os ingleses, que andavam então na nossa peugada e seguiam os nossos vestígios, acolheram a palavra e, para a adaptarem e pronunciarem – honra lhes seja! –, à sua maneira, escreveram a primeira sílaba Su, para darem o som de Sa-matra.
Rolaram anos no dobrar dos séculos. Portugal, sem já se lembrar de que havia cá na nossa terra a palavra Samatra, começou a folhear livros, revistas e monografias inglesas, e descobriu o nome da ilha de Sumatra. Era palavra de 'torna-viagem' que regressava à terra de origem. E durante anos só se conhecia cá em Portugal o termo inglês.
Deu-se, porém, reacção meritória, rejeitou-se a Sumatra anglicizada e voltou à primeira origem com a forma, actualmente usada, como a antiga, Samatra."
Mal sabia Raul Machado que, tantos anos depois destas suas palavras, era precisamente a televisão, onde ele tanto pugnou pela língua portuguesa, a propagar de novo a mais desbragada anglofilia... que chega ao cúmulo do ridículo desses dissonantes "mídia", ou ""saine" die", ou ""saine" qua non".
Com tanta ignorância à solta, quem se vai lembrar, já, de que Florida é o nome posto pelos espanhóis à península florida que eles acharam nos tempos de Colombo (e que é mesmo assim que deve ser pronunciada entre nós)?!...
(1) Não se sabe se também por orientação directiva ou se por um daqueles fenómenos em que o disparate tem um efeito multiplicador imparável, é também na SIC que os maremotos passaram a dizer-se "/maremôtos/" e os terramotos "/terramôtos/". Já agora: se o singular é cadáver (/cadávér/), por que motivo o plural há-de ser "/cadávres/"?? E porque é que há-de ser "/repórtres/" e não /repórtéres/??
2. «Quando uma Samatra o atirou para terra»
«O cronista português António Bocarro escreveu, em 1616, que uma borrasca súbita destruiu o galeão de Miguel de Macedo na "ilha grande de Malaca". O galeão ficou feito em pedaços "quando uma Samatra o atirou para terra". "Samatra" era o nome dado às tempestades tropicais típicas dos estreitos de Malaca. Um século depois, em 1711, Lockyer regista que os marinheiros ingleses chamam "Sumatras" a essas tempestades. Sabendo-se que os marinheiros do séc. XVIII não se distinguiram pelas suas capacidades literárias, o que é plausível é que o historiador inglês tenha ouvido a palavra pronunciada à portuguesa e a tenha grafado de acordo com a fonética inglesa.»