DÚVIDAS

Orações relativas com orações completivas encaixadas

Durante as férias, enquanto lia Kafka, deparei com esta frase que me deixou sobressaltado, não se desse o caso de que não soubesse que fazer, sequer dizer, quanto à concordância. Senão, vejamos: «As crueldades que está na sua natureza eles cometerem.» A fim de que resolvesse esta incongruência, primeiro, elaborei outra frase que pretendia análoga: «Está na sua natureza eles cometerem crueldades.» Não considerei pertinente, pois, introduzir o determinante artigo definido feminino plural.

Obrigado.

Resposta

A sequência apresentada, que está correta, não é uma frase, mas, sim, um grupo nominal:

1. «As crueldades que está na sua natureza eles cometerem.»

A descrição da sequência em 1 não será das mais acessíveis a uma análise gramatical no contexto escolar de nível básico ou médio. Mesmo assim, diga-se que, nessa sequência, o pronome relativo que (que tem por antecedente «crueldades») desempenha a função de complemento direto de uma oração subordinada substantiva completiva de infinitivo – «cometerem...» –, a qual está contida (ou encaixada) na oração subordinada adjetiva relativa restritiva «que está na sua natureza [eles cometerem]» (os parênteses retos destacam o encaixe dessa subordinada substantiva completiva). Tal oração subordinada completiva tem a função de sujeito no contexto da oração relativa, função que se torna mais evidente, se considerarmos que a oração relativa «que está na sua natureza cometerem» pressupõe a seguinte frase simples, que retoma na ordem direta a que o consulente apresenta:

2.  «Eles cometerem crueldades está na sua natureza.»

Em 2, «cometerem crueldades» é sujeito, e «está na sua natureza» é o predicado. Repare-se que – como o consulente bem nota – não se determina «crueldades», isto é, em 2 emprega-se o substantivo sem associar o artigo definido; este aparece em 1, é certo, mas a marcar uma operação de determinação que ocorre depois da construção relativa.

De qualquer modo, compreende-se a estranheza do consulente, a qual talvez advenha de esta possibilidade de uma relativa que contém uma completiva aparecer geralmente exemplificada nas descrições linguísticas com completivas que têm a função de complemento direto e apresentam o verbo numa forma finita, como no seguinte exemplo:

3. «São múltiplas as crueldades que vemos que cometem.»

A completiva finita «que cometem», que tem a função de complemento direto de «consideramos», pode ser substituída por uma completiva não finita (isto é, com o verbo numa forma não finita, como o infinitivo):

4.  «São múltiplas as crueldades que vemos cometerem.»

A sequência 1 tem agora o devido enquadramento, considerando as frases 3 e 4: enquanto nestas a oração completiva (finita ou não finita) tem a função de complemento direto da oração relativa – «que vemos [que cometem]»/«que vemos [cometerem]» –, a sequência 1 tem a particularidade de incluir uma completiva com a função de sujeito da relativa – «que está na sua natureza [cometerem]» (pressupondo, como atrás de disse, a frase «cometerem crueldades está na sua natureza»).

Sobre orações subordinadas completivas contidas em constituintes relativos, consulte-se a Gramática do Português (Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2013, p. 2074).

ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa ISCTE-Instituto Universitário de LisboaISCTE-Instituto Universitário de Lisboa ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa