Para começar, algumas palavras sobre uma eventual identificação entre o Acordo Ortográfico e «falar/escrever à brasileira». Se a pergunta incide sobre o uso de duas expressões, estando, portanto, relacionada com questões de léxico (frases feitas, por exemplo) e discurso, não se pode dizer que o problema levantado se deva à nova norma ortográfica, porque esta encontra o seu campo de aplicação numa vertente linguística muito diversa, a escrita. Por outras palavras, a introdução em Portugal de modismos vocabulares e fraseológicos do Brasil não decorre diretamente da ortografia (já a influência cultural de um país sobre o outro e os sinais desse processo constituem outro assunto). Além disso, aplicar o Acordo Ortográfico em Portugal não é o mesmo que escrever (nem falar) à brasileira, e a prova disso está em os portugueses continuarem a escrever facto – com c escrito, para indicar que a consoante correspondente é efetivamente pronunciada –, ou passarem a escrever receção, quando no Brasil se grafa recepção.1
1 – O Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (edições brasileiras de 2001 e 2009), elaborado no Brasil, consigna o uso pronominal de enxergar, atribuindo-lhe, sem outra indicação, o significado de «cair em si, perceber-se a si mesmo. Ex.: aquele menino não se enxerga!» Contudo, no dicionário da Academia das Ciências de Lisboa, em subentrada incluída no verbete correspondente a enxergar, regista-se a expressão «não se enxergar», descrita como «brasileirismo familiar» que significa «não reconhecer as próprias incapacidades». Uma consulta do Corpus do Português permite identificar 20 ocorrências da sequência «não se enxerga», entre as quais se contam 9 ocorrências, todas provenientes de textos de autores brasileiros, cujo significado é praticamente o atribuído à expressão «não se enxergar» pelo referido dicionário.
2 – A respeito de mancar, o Dicionário Houaiss classifica como brasileirismo o seu emprego na conjugação pronominal reflexa (edições de 2001 e 2009): «pronominal 4 Derivação: sentido figurado. Regionalismo: Brasil. Uso: informal. perceber a inconveniência, a impropriedade de seu próprio comportamento ou ação; convencer-se de um engano. Ex.: foram tantas as críticas, que ele afinal se mancou e revogou a medida.» Convém dizer que as edições de 2001 e 2009 do Dicionário Houaiss não têm abonações da expressão «não se manca» nem de eventuais variações em frase negativa. Mesmo assim, seja ou não «não se manca» uma frase que se fixou na forma negativa no português de Portugal, parece que o seu uso pronominal na referida aceção é devido à variedade brasileira.
Diga-se, portanto, que «não se enxerga» e «não se manca» são expressões do português: podem ter origem brasileira, mas igualmente se adaptaram à variedade lusitana, de tal modo, que hoje já se sente dificuldade em lembrar o modo como surgiram – talvez a partir da transmissão frequente de programas brasileiros na televisão de Portugal a partir dos anos 70 do século passado. É legítimo que os mais ciosos das características do português de Portugal queiram furtar-se à influência linguística do Brasil, mas essa atitude não tem de chegar ao ponto de impor a rejeição das locuções que daí chegam. Afinal, trata-se de património da língua portuguesa, que muitas vezes devolve o contacto com formas linguísticas antigas que em Portugal já estavam moribundas ou completamente esquecidas.
1 Recorde-se que uma das alterações que o Acordo Ortográfico (AO) trouxe para a escrita em Portugal foi a supressão das aqui chamadas "consoantes mudas", isto é, c e p, que, entre falantes da variedade portuguesa, não tinham realização fónica antes de t (directo > direto, adoptar > adotar), c (accionar > acionar, decepcionar > dececionar) e ç (redacção > redação, concepção > conceção). Esta alteração acarreta, em alguns casos, o aparecimento de grafias contrastantes entre variedades nacionais, como acontece com receção, que, em Portugal, antes de o Acordo Ortográfico vigorar, se escrevia recepção, muita embora o p fosse mudo (ou seja, sem articulação do segmento [p]); no Brasil, não houve mudança, porque o p de recepção era e é geralmente pronunciado. Sobre a supressão das consoantes mudas – um dos aspetos mais controversos das novas regras –, leia-se a Nota Explicativa [secção "Conservação ou supressão das consoantes c, p, b, g, m e t em certas sequências consonânticas (base IV)"], que em Portugal acompanhou a publicação do AO, bem como as respostas e os artigos que D´Silvas Filho, colaborador do Ciberdúvidas, dedicou à questão – por exemplo, "Novo acordo, sequências consonânticas", de 11/08/2008. Para dúvidas sobre a grafia das palavras, consulte-se o Vocabulário Ortográfico Comum da Língua Portuguesa.