A pergunta feita revela ambições que não se inscrevem no formato das respostas que são habituais no Ciberdúvidas, porque tem carácter enciclopédico, isto é, refere-se mais à história e ao contexto cultural das palavras em apreço do que estritamente ao seu significado linguístico no conjunto do léxico português. Mesmo assim, procurarei dar umas breves pistas acerca de como se concebiam as disciplinas em questão na Idade Média (ou, melhor, por volta dos séculos XII e XIII, quando florescem as universidades). Quanto à definição destes termos na atualidade, remeto o consulente para as respostas indicadas mais abaixo, em Textos Relacionados.
Comece-se por dizer que a gramática (da língua latina), a retórica e a dialética, que abrangia a lógica, constituíam o chamado trīvium (aportuguesando, trívio) das sete artes liberais do ensino universitário medieval (as outras quatro, ou seja, a música, a aritmética, a geometria e a astronomia, formavam o quadrīvium) – cf., segundo R. H. Robins, A Short History of Linguistics (Londres e Nova Iorque, Longman, 1997, pág. 82)1. Como observa M.ª do Céu Nogueira (s. v. "artes liberais", Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura Verbo), «[d]urante a escolástica, as artes, o septívio [= as sete artes liberais], não foram estudadas por si mesmas: eram vias de acesso à Sagrada Escritura».
1. gramática
Na Idade Média, o conceito de gramática parece não se afastar muito do da tradição clássica grega e latina. Sobre a história e conceito de gramática, J. G. Herculano de Carvalho anota o seguinte (s. v. "gramática", Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura Verbo):
«Derivado do substantivo neutro γράμμα, "sinal gravado", "letra", o adjectivo gr[ego] na sua forma feminina γραμματκή ἐπιστήμη, já em Aristóteles, ou γραμματκή tέχνη), quer em função substantiva (ἡ γραμματκή), tinha de início, e não podia deixar de manter para sempre, um sentido concreto e material: o que respeita à escrita e, derivadamente, à leitura. Logo, porém, a começos do pensamento especulativo sobre a linguagem, ele assume um outro abstracto, referido já não à materialidade da letra escrita ou gravada mas àquilo que nela se reflecte: a língua, o saber linguístico, a arte, a técnica do homem que fala (e escreve e lê), a arte ou ciência do homem que toma por objecto de saber mediato, reflectido, essa mesma técnica ou saber imediato, pré-reflexico. Com este sentido lato – de estudo ou conhecimento especulativo da língua como saber prático, no seu todo, incluindo a escrita (ortografia) – foi a palavra gr[ega] adoptada em lat[im] ora como substantivo (grammatica, já em Cícero; grammatices em Quintiliano) ora como adjectivo na perífrase ars grammatica (desde pelo menos a Retórica Herénio) atravessando assim t[am]b[ém] toda I[dade] Méd[ia] e chegando até aos nossos dias, nas suas várias adaptações às línguas modernas [...].»2
2. dialética e lógica
O conceito de dialética na Idade Média é também devedor da Antiguidade, embora tenha como horizonte mental a doutrina cristã, como aponta H. Lima Vaz, que assinala a convergência desta disciplina com a lógica (s. v. "Dialéctica", Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura Verbo):
«As origens da D[ialética] ligam-se na tradição filosófica gr[ega], à arte do diálogo (διαλέγεσθαι), conduzido metodicamente através do confronto de proposições avançadas pelos interlocutores, segundo o critério da sua coerência lógica [...]. Inserida no trivium das artes liberais, a D[ialética], conhecida pelos medievais nas obras de Marciano Capela e de Boécio, passa a significar a arte da argumentação em todas as matérias. Como tal, parace opor-se à Fé, sendo combatida por S. Pedro Damião e por toda uma linhagem de antidialécticos; e exaltada pelos dialécticos, de Berengário de Tours a Abelardo. Posteriormente, o termo D[ialética] vem a tornar-se, na tradição escolástica, sinónimo de lógica formal, como testemunham tantos compêndios de Institutiones dialecticae.»
Note-se que J. Vries (s. v. "lógica", Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura Verbo) sublinha que «[...] [n]os começos da Escolástica [medieval] e no século XVI (Melanchton, Ramus, Fonseca), o termo mais usado é Dialéctica».3
3. retórica
A definição de retórica4 durante a Idade Média não deverá ter sido muito diferente da existente na Antiguidade. Essa parece a ilação que Aníbal Pinto de Castro confirma (s. v. "retórica", ELBC):
«Durante a I[dade] Méd[dia] – sobretudo a partir do séc[ulo] XIII – encontramos a R[etórica] entre as "artes" do trivium. Ensinava-se então seguindo o texto do De Inventione de Cícero (designado por Rhetorica Vetus) e pela Rhetorica ad Herenium (t[am]b[ém] chamada Rhetorica Nova). A sua presença nas esc[ola]s medievais port[uguesa]s documenta-se através de um razoável número de m[anu]s[crito]s, onde deve salientar-se o núcleo proveniente do Mosteiro de Alcobaça.»
4. oratória
Não encontro comentário ou apontamento que sugiram ou aceitem que este termo era entendido na Idade Média (no período que acima delimitei) de maneira diferente na Antiguidade ou nos dias de hoje. Cite-se J. Augusto Alegria (s. v. "oratória", ELBCV), que propõe a seguinte definição:
«[...] [E]ntendemos por O[ratória] o gén[ero] lit[erário] que agrupa as obras daqueles autores que se empenharam, pela eficácia da palavra, em persuadir os outros da justiça e da verdade das suas causas.»
1 Não conheço tradução portuguesa, mas sei que está disponível em espanhol — R. H. Robins, Breve Historia de la Lingüística, Madrid, Ediciones Cátedra, 2004.
2 Sobre gramatikê tekhnê, convém saber que a expressão se referia à «técnica das letras» e que, «[p]or extensão, [...] passou a arte ou ciência de ler e escrever, sendo tékhne (equivalente à ars dos latinos) um tipo de conhecimento dirigido à produção e ao saber fazer humano, aplicado, ao nível da língua, na regulamentação da sua pureza linguística» (Maria do Céu Fonseca, s. v. "Gramática", E-Dicionário de Termos Literários, coord. de Carlos Ceia, ISBN: 989-20-0088-9, consultado a 29/08/2011). Os romanos mantiveram a concepção grega, que, deste modo, passou aos tempos medievais: «A plêiade dos gramáticos romanos Varrão (I a. C.), Quintiliano (I a. C.), Donato (século I) e Prisciano (século V) mantém, mutatis mutandis, a concepção grega da gramática como arte de escrever e a concepção helenística da gramática como interpretação dos textos literários. Mas em poucos séculos todo este património bibliográfico de Roma conduzirá à institucionalização da gramática como arte do trivium e tornar-se-á um instrumento de trabalho imprescindível na banca de qualquer gramático [...].» (ibidem)
3 Sobre o conceito de dialéctica a partir do século XVIII, veja-se o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa: «1 em sentido bastante genérico, oposição, conflito originado pela contradição entre princípios teóricos ou fenômenos empíricos [...] 1.3 Rubrica: filosofia. no kantismo, raciocínio fundado em uma ilusão natural e inevitável da razão, que por isto permanece no pensamento, mesmo quando envolvido em contradições ou submetido à refutação Obs.: cf. dialética transcendental 1.4 Rubrica: filosofia. No hegelianismo, lei que caracteriza a realidade como um movimento incessante e contraditório, condensável em três momentos sucessivos (tese, antítese e síntese) que se manifestam simultaneamente em todos os pensamentos humanos e em todos os fenômenos do mundo material 1.5 Rubrica: filosofia. no marxismo, versão materialista da dialética hegeliana aplicada ao movimento e às contradições de origem econômica na história da humanidade 2 Derivação: sentido figurado (da acp. 1.1). Uso: pejorativo. arte, modo de discutir por meio de raciocínios especiosos e vazios.»
4 J. Augusto Alegria (s. v. "oratória", ELBCV) entende que «[...] [r]etórica será, propriamente, a arte ou técnica de persuadir, de modo parecido ao modo como a poética é a técnica da poesia» (mantive ortografia original).