Parece-me que há, prezada consulente, uma lacuna metodológica no trabalho que se propõe fazer. Antes de mais, fala de dois aspectos que têm de ser abordados de forma independente, pois não têm necessariamente que ver um com o outro, em termos de objecto de estudo e de metodologia, note-se.
Por um lado, a consulente fala de política da língua e de língua como factor de identidade. Por outro lado, diz que tem que «preparar um seminário relacionando as gramáticas normativas e descritivas.» Ora a existência de gramáticas normativas e descritivas é um assunto estritamente linguístico e por isso sujeito a metodologias específicas diferentes das que são necessárias para abordar a política da língua, que, sendo um tema linguístico, vai abranger outras áreas do conhecimento, com as quais tem, talvez, laços mais fortes. Têm em comum, é um facto, a necessidade de um profundo conhecimento da língua, mas são assuntos e abordagens diferentes.
Se a consulente precisa de fazer um trabalho comparando gramáticas descritivas com gramáticas normativas, então seleccione um conjunto de gramáticas de cada um dos tipos e analise-as em profundidade, comparando os aspectos em que coincidem com os aspectos em que divergem. Deixe-me alertá-la para um facto da máxima importância.
Se quer, realmente, ficar com uma noção clara das diferenças, não analise todos os itens que as gramáticas focam. Uma gramática engloba tantos aspectos diferentes, que corre o risco de perder-se e de chegar ao final a saber pouco mais do que sabia no início. Em vez disso, seleccione uma pequena parte; por exemplo, os pronomes pessoais. Investigue o mais que puder sobre essa parte, veja como os dois tipos de gramáticas que pretende estudar abordam a questão, observe como as pessoas que a cercam falam e escrevem, recorra aos excelentes estudos sobre o português que existem no Brasil e em Portugal e tire as suas conclusões.
Já agora, analise o mesmo aspecto que estudar nas gramáticas brasileiras em gramáticas portuguesas e conclua se são iguais. A Nova Gramática do Português Contemporâneo, de Celso Cunha e Lindley Cintra, pode ser um bom exemplo de gramática normativa. Como gramática descritiva poderá recorrer à 5.ª edição da Gramática da Língua Portuguesa, de Maria Helena Mira Mateus e outros, editada em Lisboa, pela Editorial Caminho, em 2003. Se optar por estudar, como lhe sugeri, os pronomes pessoais, descobrirá que a norma portuguesa e a norma brasileira defendem exactamente o contrário uma da outra.
Consulte também obras como Introdução à Linguística Geral e Portuguesa, organizada por Isabel Faria e outros, editada, em Lisboa, pela editorial Caminho, em 1996, onde poderá encontrar artigos dedicados à sintaxe da variante da língua portuguesa que se fala no Brasil; ou as Áreas Críticas do Português, de João Peres e Telmo Móia, obra editada pela mesma editora em 1995. Aí poderá ver que divergências entre a norma e o uso não existem só no Brasil. Isso poderá ajudá-la a formar o seu próprio juízo sobre língua, nas duas variantes.
Quanto à importância da língua como identidade nacional, se pretende aprofundar o assunto, o único conselho que posso dar-lhe é que analise criticamente as várias posições. Há muitos autores que têm escrito sobre esse assunto. Uma vez mais aconselho-a a ler também alguma coisa do que se escreve em Portugal sobre este tema.
Aconselho-lhe sobretudo os dois primeiros artigos do livro A Face Exposta da Língua Portuguesa, de Maria Helena Mira Mateus, editado em Lisboa pela Imprensa Nacional – Casa da Moeda, em 2002. Trata-se de uma compilação de artigos que esta linguista de renome internacional escreveu ao longo da sua carreira sobre a problemática da língua como identidade nacional.
Gostaria ainda de fazer um comentário final à sua alusão à nossa lusitanidade e ao facto de darmos importância aos erros. Começando pelo fim, o Ciberdúvidas não dá importância aos erros. O Ciberdúvidas existe porque dá importância à correcção linguística, ao respeito pela língua portuguesa, não só dos portugueses, mas de todo o espaço lusófono. Do ponto de vista convencional, procuramos obedecer às duas ortografias claramente definidas: a portuguesa e a brasileira. Do ponto de vista estrutural, acolhemos e desejamos a colaboração de falantes de todas as variantes cultas da língua portuguesa, para manter a diversidade e qualidade que merecem os seus visitantes, espalhados por todo o mundo, com as mais variadas formações.