O que António Guterres diz prende-se com uma distinção conceptual que tem implicações jurídicas e políticas, porque classificar um indivíduo como simples migrante (ou imigrante, do ponto de vista dos países de chegada) não obriga a acionar os mesmos mecanismos legais e políticos que decorrem de considerá-lo como refugiado. Por outras palavras, a quem foge a um conflito, deve aplicar-se o termo refugiado, e não migrante; portanto, o agravamento, sobretudo no verão de 2015, da situação criada na Europa com a chegada maciça de pessoas que fogem da guerra na Síria e no Iraque configura não uma «crise migratória» mas, sim, uma «crise de refugiados». É esta a perspetiva semântica e referencialmente adequada, tanto do ponto de vista da língua corrente como no plano da terminologia usada no direito internacional, conforme se explica em seguida.
Aprofundando um pouco mais as vertentes linguísticas do problema:
1 – O caso apresentado tem semelhanças, mas não é exatamente do tipo em que se incluem os usos impróprios de humanitário e solarengo. Nestes dois casos (que também não são exatamente do mesmo subtipo), verifica-se que os adjetivos se associam indevidamente a substantivos cujos significados os contradizem («crise humanitária» é uma contradição nos termos, dado, em princípio, o sentido negativo de crise chocar com a orientação positiva de humanitário, «em prol da humanidade») ou cuja semântica gera uma incoerência («tempo solarengo» é absurdo, porque relaciona o tempo atmosférico com uma realidade que lhe é estranha – um tipo de habitação denominado solar, cuja etimologia se relaciona com solo, e não com sol). Sobre a relação entre emigrante, imigrante e migrante, impõe-se definir os respetivos significados – que semelhanças e que contrastes? – e saber se existe conceptualmente entre esses termos alguma relação de hierarquia (por exemplo, genérico/concreto). Além disso, no contexto da atual crise provocada pela deslocação de populações provenientes do Médio Oriente e de África, bem como na perspetiva de quem acolhe tais populações, ou seja, do ponto de vista dos países da União Europeia, importa clarificar o que se entende por migrante/imigrante e por refugiado, porque tais vocábulos, embora tenham em comum a noção muito genérica de «pessoa que se desloca para fora da sua região ou do seu país», apresentam também diferenças conceptuais e conotações com consequências práticas.
2 – Tendo em conta as definições de emigrante, imigrante e migrante em dicionários gerais, vemos [dicionários consultados e siglas respetivas, usadas para referência na exposição que se segue: Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora (DPE), em linha na Infopédia; Dicionário Priberam da Língua Portuguesa (DPriber); dicionário da Academia das Ciências de Lisboa (DACL)]:
– emigrante: «que ou pessoa que sai voluntariamente do local onde vive para se estabelecer noutro» (DPE); «Que ou quem emigra ou sai da sua região ou do seu país para se estabelecer noutro» (DPriber); «que deixa o seu país para se estabelecer e residir noutro, por motivos económicos, políticos, religiosos…; que emigra» (DACL);
– imigrante: «que ou pessoa que imigra» (DPE, no qual imigrar = «entrar num país estranho a fim de nele se estabelecer»); «Que ou quem imigra ou se estabelece em região ou país diferente do seu» (DPriber); «que se estabeleceu num país estrangeiro; que imigrou» (DACL);
– migrante: «que muda de região ou de país» (DPE); «Que ou o que muda de país ou de região» (DPriber); «que muda de país; que participa numa migração» (DACL).
3 – O breve levantamento atrás apresentado confirma o que tem sido dito no Ciberdúvidas sobre estes termos. Acerca de migrante, os dicionários consultados definem-no de modo mais vago ou genérico, abrangendo as significações de «emigrante» e «imigrante»; ou seja, migrante refere-se a quem muda de país ou região, em geral, independentemente da perspetiva (país de saída vs. país de chegada). Contudo, há também quem reserve migrante para a referência a quem se desloca no mesmo país, num movimento que configura uma «migração interna» (ver resposta O significado de migrante). Mesmo assim, é possível dizer-se que emigrantes e imigrantes são genericamente migrantes, sendo esta palavra, portanto, um hiperónimo daquelas. Esta relação reproduz-se na que se estabelece entre os adjetivos derivados emigratório, («relativo a emigração ou emigrante»), imigratório («relativo a imigração ou imigrantes) e migratório («relativo a migração ou a migrante)1.
4 – Quanto a refugiado, o significado deste substantivo e adjetivo não deixa de estar na interseção da semântica de migrante, emigrante e imigrante, mas a perspetiva associada tem que ver agora com as condições que levaram à deslocação, ou seja, à migração. Segundo o DACL, trata-se «[daquele] que teve de abandonar o seu país para fugir a uma perseguição, a uma condenação, a uma guerra». Conceptualmente, esta definição é a mesma que encontramos atribuída aos termos homólogos noutras línguas, designadamente no inglês, atualmente língua principal de muitas organizações internacionais, designadamente, do Alto-Comissariado das Nações Unidos para os Refugiados (ACNUR; em inglês, Office of the United Nations High Comissioner for Refugees, cuja sigla é UNHCR), a qual define assim refugee, ou seja, refugiado na sua versão inglesa
«The 1951 Refugee Convention spells out that a refugee is someone who "owing to a well-founded fear of being persecuted for reasons of race, religion, nationality, membership of a particular social group or political opinion, is outside the country of his nationality, and is unable to, or owing to such fear, is unwilling to avail himself of the protection of that country".»
Na versão portuguesa do portal da organização em apreço, esta passagem encontra-se traduzida do seguinte modo:
«A Convenção de Refugiados de 1951, que estabeleceu o ACNUR, determina que um refugiado é alguém que, “temendo ser perseguido por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se encontra fora do país de sua nacionalidade e que não pode ou, em virtude desse temor, não quer valer-se da proteção desse país”.»2
5 – Em síntese, o contraste entre, por um lado, migrante (ou querendo especificar, imigrante, na perspetiva europeia) e, por outro, refugiado tem aspetos extralinguísticos que não se resumem à incoerência semântico-referencial gerada pela associação de palavras (casos de «crise humanitária» e «dia solarengo»). Na verdade, trata-se de uma distinção que envolve operações de conceptualização e categorização que têm importantes implicações políticas. Porque, se o tratamento de que os refugiados podem beneficiar não é o mesmo que é dado aos imigrantes, é de supor que, a coberto da confusão dos primeiros com os segundos, os países de acolhimento podem eventualmente encontrar justificação para medidas que, bem examinadas, acabam por ser menos aceitáveis à luz do direito internacional.
1 É de assinalar que migrador e migratório ocorrem também em relação a animais que saem de uma região para outra; p. ex., diz-se simplesmente «aves migradoras/migratórias», sendo irrelevante aqui o uso de emigratório ou imigratório.
2 Convém ainda dar alguma atenção à distinção que o próprio ACNUR faz entre refugee e migrant, respetivamente, refugiado e migrante:
«Refugees are persons fleeing armed conflict or persecution. [...] Their situation is often so perilous and intolerable, that they cross national borders to seek safety in nearby countries, and thus become internationally recognized as "refugees" with access to assistance from States, UNHCR, and other organizations. They are so recognized precisely because it is too dangerous for them to return home, and they need sanctuary elsewhere. These are people for whom denial of asylum has potentially deadly consequences. [...]
Migrants choose to move not because of a direct threat of persecution or death, but mainly to improve their lives by finding work, or in some cases for education, family reunion, or other reasons. Unlike refugees who cannot safely return home, migrants face no such impediment to return. If they choose to return home, they will continue to receive the protection of their government.
For individual governments, this distinction is important. Countries deal with migrants under their own immigration laws and processes. Countries deal with refugees through norms of refugee protection and asylum that are defined in both national legislation and international law. Countries have specific responsibilities towards anyone seeking asylum on their territories or at their borders. UNHCR helps countries deal with their asylum and refugee protection responsibilities. [...]
[...] at UNHCR we say 'refugees and migrants' when referring to movements of people by sea or in other circumstances where we think both groups may be present – boat movements in Southeast Asia are another example. We say 'refugees' when we mean people fleeing war or persecution across an international border. And we say 'migrants' when we mean people moving for reasons not included in the legal definition of a refugee. We hope that others will give thought to doing the same. Choices about words do matter.»
[Tradução livre: «Os refugiados são indivíduos que fogem de conflitos armados ou das perseguições. A sua situação é muitas vezes tão perigosa e intolerável, que atravessam as fronteiras nacionais em busca de segurança nos países vizinhos, tornando-se assim internacionalmente reconhecidas como "refugiados", com acesso a ajuda dos Estados soberanos, da ACNUR e outras organizações. São reconhecidos deste modo precisamente porque, sendo para eles muito perigoso regressar a casa, têm necessidade de encontrar refúgio noutro lugar. Trata-se de pessoas para quem a recusa de asilo potencia consequências de perigo mortal.
Os migrantes decidem deslocar-se não por causa de ameaça direta de perseguição ou morte, mas principalmente para melhorar as suas condições de vida mediante a procura de trabalho, ou, em alguns casos, para assegurar a educação, permitir a reunião da família, entre outras razões. Ao contrário dos refugiados, que não podem regressar a casa em segurança, o regresso dos migrantes não conhece impedimento. Se optam por regressar, continuarão a receber proteção do respetivo governo.
Para os governos nacionais, esta distinção é importante, pois os países tratam os migrantes de acordo com as leis e os processos previstos para a imigração, enquanto, com os refugiados, atuam de acordo com as normas de proteção e asilo de refugiados definidas pela legislação nacional e pela lei internacional. Os países têm certas responsabilidades para com quem quer que busque asilo nos seus territórios ou nas suas fronteiras. O ACNUR ajuda os países a enfrentar as suas responsabilidades pelo asilo e pela proteção de refugiados.
No ACNUR, falamos em "refugiados e migrantes" em referência à deslocação de pessoas por mar ou noutras circunstâncias em que julgarmos que ambos os grupos estão presentes – as travessias de barco no sueste asiático são outro exemplo. Falamos em "refugiados" quando mencionamos pessoas que, ao fugirem da guerra ou de perseguições, atravessam uma fronteira internacional; falamos de "migrantes" quando mencionamos pessoas que se deslocam por razões não abrangidas na definição legal de refugiado. Esperamos que outros tencionem fazer a mesma distinção, já que a escolha das palavras é decisiva.»]
N.E. – Vide, em complemento a esta resposta, o comentário do nosso consultor Miguel Faria de Bastos, A noção jurídica de refugiado.
Cf. Convenção relativa ao Estatuto do Refugiados + Perguntas e respostas + Refugiados + Justiça europeia reconhece direito das mulheres vítimas de violência de género a ter estatuto de refugiadas + Qualquer mulher afegã poderá ter estatuto de refugiado na União Europeia, diz TJUE