DÚVIDAS

A frase bíblica «Eu sou o pão vivo, que desci do céu»

A frase «eu sou o pão vivo, que desci do céu» [João 6, 51] soa-me sempre mal, mas fico na dúvida se em português é possível fazer esta construção ou se, pelo contrário, seria obrigatório que o verbo da oração relativa ficasse na terceira pessoa, concordando com o antecedente do relativo – «o pão vivo».

Fico com a ideia de que em latim, por exemplo, esta frase não resultaria problemática porque o que declinado indicaria a sua relação com o eu da oração subordinante, equivalendo a «eu, que desci do céu, sou o pão vivo», sendo então esta a única formulação em português que se poderia aceitar como correcta, obrigando a que o relativo esteja mesmo sempre a seguir ao seu antecedente.

É assim?

 

N. E. (07/04/2020) – Manteve-se a forma correcta, que é da norma anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.

Resposta

Com efeito, em latim, a frase do Evangelho segundo S. João é «Ego sum panis vivus, qui de caelo descendi»1. Nesta frase, o pronome relativo toma como antecedente o pronome pessoal ego, o que se confirma pela flexão verbal na primeira pessoa do singular (descendi).

Na tradução da frase para português, devem manter-se as mesmas relações sintáticas, ou seja, o pronome relativo que deve ter como antecedente o pronome pessoal eu, o que significa que o verbo deve flexionar na primeira pessoa do singular (desci).

Na frase que obtemos em português contemporâneo, coloca-se, no entanto, a questão da gramaticalidade do afastamento da oração relativa do seu antecedente. Tipicamente, a oração relativa coloca-se em adjacência ao seu antecedente, não havendo lugar à introdução de constituintes entre o nome antecedente e a oração relativa2. Por esta razão, é possível que uma frase como (1) seja sentida como mais natural pelos falantes:

(1) «Eu, que desci dos céus, sou o pão vivo.»

No entanto, em particular com construções copulativas, o afastamento da oração relativa é um processo sintático que pode ter lugar quando esta tem como antecedente o sujeito da frase:

(2) «Eu sou o primeiro que sei esta canção.»

Por outro lado, quando o antecedente do pronome relativo é o predicativo do sujeito, a concordância pode dar-se com um dos dois constituintes: sujeito ou predicativo do sujeito. Como explica Bechara, «se o antecedente do pronome relativo funciona como predicativo, o verbo da oração adjetiva pode concordar com o sujeito de sua principal ou ir para a 3.ª pessoa (se não se quer insistir na íntima relação entre o predicativo e o sujeito)»3. Esta particularidade torna aceitáveis as frases (2) e (3):

(3) «Eu sou o primeiro que sabe esta canção.»

Em síntese, do que ficou dito resulta que:

(i) a oração relativa tem como antecedente o pronome pessoal eu;

(ii) o verbo da oração relativa deve flexionar na 1.ª pessoa do singular, atendendo ao antecedente do pronome relativo;

(iii) pode existir um afastamento entre a oração relativa e o seu antecedente;

(iv) ainda que o pronome relativo tivesse como antecedente «pão vivo» (que não é o caso), poderia o verbo concordar com o sujeito, flexionando na 1.ª pessoa do singular.

Acrescente-se, para concluir, que há outras traduções propostas para a mesma frase, como é o caso de (4)

(4) «Eu sou o pão vivo, o que desceu do céu.» (Bíblia Sagrada, Difusora Bíblica/Franciscanos Capuchinhos, 2008) 

 

Disponha sempre!

 

1. De acordo com o registo da Bíblia em Latim, disponível no arquivo digital do Vaticano.

2. Há, contudo, casos de afastamento da relativa que estão já tipificados. Cf. Adriana Cardoso (2009). “Extraposição de orações relativas: uma abordagem comparativa entre o português antigo e o português actual”. In Textos Seleccionados. XXIV Encontro Nacional da Associação Portuguesa de Linguística, Lisboa, APL, pp. 169-184 (disponível em linha aqui ).

3. cf. Moderna Gramática Portuguesa. Ed. Lucerna, p. 455.

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