O consulente, que, ao que tudo indica, é aluno do 3.º ciclo ou do ensino secundário em Portugal, não nos diz qual é o canto a que pertence a estrofe que pretende ver parcialmente analisada. Como estrofes ou estâncias que alcancem o número 129 só ocorrem no canto III e X, transcrevo os quatro primeiros versos de cada uma (mantém-se a ortografia da edição de Júlio Costa Pimpão, disponível em http://cvc.instituto-camoes.pt/bdc/literatura/lusiadas/):
A. Canto III, estância 129
«Põe-me onde se use toda a feridade,
Entre liões e tigres, e verei
Se neles achar posso a piedade
Que entre peitos humanos não achei.»
B. Canto X, estância 129
«Ves, corre a costa que Champá se chama,
Cuja mata é do pau cheiroso ornada;
Vês Cauchichina está, de escura fama,
E de Ainão vê a incógnita enseada;»
Contudo, como a análise da estrofe reproduzida em B me parece extremamente complexa para alunos dos níveis de ensino em apreço,1 estou
em crer que a pergunta se relacione apenas com a estância 129 do canto III, cujos quatro primeiros versos são analisáveis do seguinte modo (aplico termos do Dicionário Terminológico, recentemente adotado no ensino básico e secundário de Portugal):
A.
— Orações coordenadas copulativas:
a) «Põe-me onde se use toda a feridade,/ entre liões e tigres»;2
b) «e verei/ Se neles achar posso a piedade que entre peitos humanos não achei».
— Oração subordinada substantiva relativa (elemento subordinante: «põe-me»): «onde se use toda a feridade, entre liões e tigres»3
— Oração subordinada substantiva completiva (elemento subordinante: «e verei»): «se neles achar posso a piedade»
— Oração subordinada adjetiva relativa restritiva: «que entre peitos humanos não achei»
Ao todo, são cinco as orações identificáveis nos quatro versos em apreço.
1 Não obstante, deixo aqui algumas propostas de análise para os versos B, começando por dizer que o primeiro e terceiro versos, onde ocorre a forma verbal «vês» (a grafia «ves» deve ser interpretada como «vês»), podem ser interpretado de duas formas:
1. Nos versos em questão verifica-se a elipse da conjunção que, pelo que a respetiva interpretação deve restituir essa palavra: «vês [que] corre a costa que Champá se chama»; «vês [que] Cauchichina está, de escura fama». A omissão de que completivo é uma possibilidade descrita quer por Evanildo Bechara (Moderna Gramática Portuguesa, 2002, pág. 593) quer por Celso Cunha e Lindley Cintra (Gramática do Português Contemporâneo, 1984, pág. 615).
2. É ainda possível interpretar os mesmos versos de outra maneira, em que «vês» é um marcador discursivo, ou seja, uma palavra que marca a relação entre os intervenientes de uma situação de comunicação. Nesse caso, tratar-se-ia de uma chamada de atenção dirigida ao interlocutor («vês?»).
Destas interpretações decorrem análises diferentes:
Interpretação 1
Orações coordenadas:
a) «Vês [que] a costa que se chama Champá, cuja mata é ornada do pau cheiroso, corre»;
b) «Vês [que] Cauchichina, de escura fama, está (entenda-se como «surge», «aparece»);
c) «e vê a incógnita enseada de Ainão».
Por sua vez, as orações a) e b) são analisáveis como orações subordinantes nas quais se encaixam duas orações subordinadas completivas:
d) «[que] a costa que se chama Champá, cuja mata é do pau cheiroso ornada, corre»;
e) «[que] Cauchichina, de escura fama, está»:
Por fim, deve referir-se ainda uma oração adjetiva relativa apositiva que tem por subordinante «[que]a costa de Champá...corre»:
f) «cuja mata é ornada do pau cheiroso»;
Interpretação 2
Nesta perspetiva, a análise é ligeiramente diferente:
a) os marcadores discursivos não formam uma oração propriamente dita (pelo menos, numa perspetiva tradicional e mesmo à luz do Dicionário Terminológico);
b) sendo assim, detetam-se três orações coordenadas:
(i) «a costa que se chama Champá, cuja mata é ornada do pau cheiroso, corre»;
(ii) «Cauchichina, de escura fama, está»;
(iii) «e vê a incógnita enseada de Ainão».
Em (i), mantém-se a análise de «cuja mata é ornada do pau cheiroso» como oração subordinada adjetiva relativa.
2 Propõe-me um consulente (João de Brito, Vila real) que esta sequência seja antes interpretada como «entre liões e tigres, onde se use toda a feridade», por questões semânticas. Nesse caso, do ponto de vista sintático, parece-me que o grupo preposicional «entre liões e tigres» seria encarado como complemento oblíquo de «põe-me» e «onde se use toda a feridade», uma oração subordinada adjetiva relativa explicativa, dado que tem a função de modificador apositivo de «entre liões e tigres». Esta ordem será legítima se se tiver em conta que o texto poético versificado, sobretudo o clássico, frequentemente se caracteriza pela deslocação de constituintes e palavras, com o resultado de as frases assim formadas violarem a ordem de constituintes mais habitual. No entanto, esta análise parece-me forçada, por supor a inversão da ordem entre uma oração subordinada adjetiva relativa e o seu antecedente, a qual é agramatical, como se constata de maneira mais clara no seguintes exemplos (*indica agramaticalidade): «o rei mandou matar Inês, que estava inocente»; *«o rei mandou matar que estava inocente, Inês». Por este motivo, mesmo supondo que a sequência original fosse vista como um hipérbato para justificar tal inversão agramatical, continuo a achar mais adequada, porque mais económica, a classificação de «onde se use toda a feridade» como oração subordinada substantiva relativa.
3 Classifico o constituinte «entre liões e tigres» como um aposto circunstancial, seguindo assim E. Bechara (Moderna Gramática Portuguesa, 2002, pág. 457) e uma paráfrase sugerida pelo consulente João de Brito (Vila Real): «(como) entre liões e tigres». No entanto, dado que este constituinte forma um grupo preposicional de valor adverbial, a sua classificação como aposto é problemática, porque os apostos são habitualmente definidos como expressões exclusivamente nominais (cf. Celso Cunha e Lindley Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, 1984, pág. 156) ou também adjetivais (cf. M. H. Mira Mateus et al. Gramática da Língua Portuguesa, 2003, pág. 368-369). Mesmo assim, Cunha e Cintra (1984: 158), ao abonarem a possibilidade de o aposto ocorrer num complemento nominal apresentam o uso de um grupo preposicional apositivo (o exemplo é de Augusto Frederico Schmidt, As florestas: páginas de memórias, Rio de Janeiro, José Olímpio, 1959, pág. 72): «A vida é um contínuo naufrágio de tudo: de seres e de coisas, de paixões e indiferenças, de ambições e temores». Parece-me, portanto, legítimo classificar «entre liões e tigres» como aposto.