Assumo que o consulente se refere aos nomes de pessoas, mas em todo o caso a seguinte reflexão também se aplica a nomes de lugares ou expressões que remetem para uma entidade particular ou individual.
Na linha da tradição gramatical da língua portuguesa, Rebelo Gonçalves, no Tratado de Ortografia da Língua Portuguesa (1947), recomendava: «dar uso normal às formas vernáculas de apelidos estrangeiros de renome, designadamente de escritores, eruditos e cientistas, sempre que essas formas tenham tradição ou, embora não a tendo, resultem de correcto aportuguesamento.» Nesse sentido, Rebelo Gonçalves propunha, por exemplo, Jorge Bucanano para nomear o humanista escocês do século XVI George Buchanan, ou Hamleto para nomear a personagem que dá nome ao clássico drama escrito por Shakespeare (cf. Rebelo Gonçalves, Vocabulário da Língua Portuguesa, 1966).
Acontece que a tradição, como dizia um certo anúncio, já não é o que era e, no âmbito da ciência da linguística, tradição deve ser vista como a forma consagrada pelo uso e não tanto como dogma ou legado transmitido de geração em geração, articulando-se com a noção de mudança linguística decorrente, entre outros fatores, dos contactos com outras línguas. Numa era de intensa circulação de pessoas e de bens e de generalização das relações transfronteiriças, suportadas por meios tecnológicos como a televisão ou a Internet, certas formas tornaram-se mais familiares. Daí decorre que, a haver um uso vernacular de Buchanan, este não seria o sisudo Bucanano, mas, sim, risível Bacano, como no apodo «Mitch Bacano» para referir o popular nadador-salvador da série televisiva Marés Vivas.
Assim, seguindo princípios contemporâneos das técnicas de tradução (cf. Christian Nord, Anthony Pym, Donald Kiraly, entre outros), e respondendo à sua questão sobre a possibilidade de verter nomes ingleses para português e vice-versa, devem ser tidos em conta os seguintes aspetos:
1 – Figuras de relevo [histórico, cultural] cujo nome está traduzido.
Atente-se que a dimensão referencial dos nomes próprios (respeitam a uma só entidade individualizada) tem reflexos na tradução: dizemos Martinho Lutero para referir o teólogo reformista Martin Luther (alemão), fruto da tradição de tradução dos nomes próprios, mas já dizemos Martin Luther King (inglês) e não "Martinho Lutero Rei" para nomear o líder do movimento cívico de defesa dos direitos dos negros norte-americanos. A diacronia (os fenómenos sociais e linguísticos numa linha temporal) é determinante para este resultado.
Os efeitos da denominada globalização, permitindo o acesso direto a fontes em línguas estrangeiras e à apropriação dos nomes tal como referidos nesses países, levam a que 20 anos depois do casamento real de Carlos e Diana, tivesse lugar o casamento real de William e Kate (e não de Guilherme e Catarina).
2 – Não sendo uma figura cujo nome traduzido esteja consagrado, o nome é mantido no original. Por exemplo, não nos referimos ao cantor Pedro Gabriel para referir o ex-vocalista dos Genesis, nem eu faria a “retroversão”, como é denominada nos estudos clássicos, para me apresentar como sendo Michael, Michel ou Mikhail.
3 – Concomitantemente à observância dos pontos 1 e 2, é o contexto de tradução que influi nas opções do tradutor, o qual poderá escolher uma das seguintes opções:
a) usar um correspondente na língua-alvo (substituição);
b) manter o nome original (transferência);
c) apresentar um equivalente (tradução);
d) modificar o original de maneira a que mantenha a função aproximada àquela que é desempenhada no original (recriação);
e) proceder a uma transliteração e transcrição fonética;
f) aproximação fonética.
Usualmente, é mantido o original (transferência), mas há casos em que é necessários operar alterações:
1) quando os sistemas ortográficos não o permitem, é feita a transliteração ou aproximação fonética (p. ex., o escritor Gao Xingjian ou, seguindo a ordem ocidental dos nomes, Xingjian Gao )
2) quando o nome encerra uma expressão com um sentido referencial (p. ex., o nome do chefe índio Tatanka Yotanka ou Tȟatȟáŋka Íyotake pode ser recriado como Touro Sentado).
Há, no entanto, contextos em que o nome próprio sofre alterações, normalmente quando se inserem num contexto de tradução de textos literários ou outros documentos ficcionais. Alguns exemplos:
1) usar um correspondente na língua-alvo (substituição) — este processo é frequente na literatura infantil e juvenil quando é necessário facilitar a compreensão dos textos (identificação das personagens), mas não ocorre sempre (cf. Pedro Pevensie como tradução de Peter Pevensie de As Crónicas de Nárnia, de C. S. Lewis, e o caso de Peter Pan, de J. M. Barrie);
2) apresentar um equivalente (tradução) — nomes com sentido referencial, como Mad Hatter (Chapeleiro Louco) de Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carrol, ou a tradução para francês de Neo como Néo no filme Matrix, de modo a manter o sentido veiculado pelo prefixo.
3) modificar o original de maneira a que mantenha a função aproximada àquela que é desempenhada no original (recriação) — é na literatura infantil que encontramos mais exemplos, como o nome de uma das fadas de A Bela Adormecida: Fauna, Flora e Primavera (Merryweather).
4) proceder a uma transliteração e transcrição fonética — para além dos casos acima referidos, temos também Pinóquio para referir Pinocchio.
5) proceder à aproximação fonética — não se trata de fazer a transcrição, mas procurar aproximar o nome na língua-alvo do original na língua de partida (Jaguadarte para Jabberwocky de Alice no País das Maravilhas, embora haja quem tenha optado pela recriação, propondo Blablassauro)
Concluindo, a ideia de que se deverá fazer sempre que possível a tradução (ou aportuguesamento, como é dito no início) de nomes próprios deve ser substituída pelo princípio de que a tradução deve tornar compreensível aquilo que é dito ou escrito noutra língua (isto de um ponto de vista estritamente linguístico; para uma reflexão filosófica, pode ler, entre outros, o artigo de John Searle intitulado “Proper Names”). A compreensão é o elemento-chave e, como já não vivemos fechados no nosso cantinho e nos tornámos cidadãos do mundo, não precisamos de ter os nomes próprios vertidos para o nosso idioma. Repare que é importante dar atenção ao papel do nome quer na língua de partida, quer na língua de chegada: é o caso de Auschwitz (alemão) em vez de Oświęcim (polaco), nome utilizado para designar a região no sul da Polónia onde se situa o infame campo de concentração nazi.