Quando se referiam ao dia imediatamente anterior àquele em que estavam, os romanos serviam-se da expressão hesterno die ou, mais frequentemente, do advérbio heri. Este último vocábulo pode considerar-se um verdadeiro “caso de sucesso”, pois deu origem, entre outros, a ayer em castelhano, ahir em catalão, ayeri em asturiano (todos eles através da locução ad heri), ieri em italiano e em romeno, ièr em occitano, hier em francês (do qual provém hieraŭ em esperanto) e eire em galego-português (com a variante eiri, que encontramos nos versos iniciais desta cantiga de escárnio e maldizer, cuja versão integral se pode ler aqui):
«Dom Estêvam, eu eiri comi
em cas del-rei, nunca vistes melhor,»
Estranhamente, heri não deixou qualquer vestígio em português moderno, tendo eire e eiri sido substituídos por ontem, vocábulo que só encontra paralelo em galego e mirandês, línguas em que o advérbio assume a forma onte. Terá a referida substituição ficado a dever-se à semelhança com eira, termo antiquíssimo na nossa língua (1018) e outrora muito frequente? É difícil descortinar…
Quando à origem de ontem, atualmente parece não haver dúvidas de que este advérbio terá sido formado a partir da locução latina ad noctem. É este o étimo que lhe atribuem todos os dicionários modernos que consultei, além das obras mais especializadas, como o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa (Terceiro Volume (M–P), 4.ª edição, Lisboa, Livros Horizonte, 1987) de José Pedro Machado (1914–2005), o Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa (2.ª ed., Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2001) de Antônio Geraldo da Cunha (1924–1999) e o Dicionário Eletrônico Houaiss, obra de que extraio a seguinte explicação etimológica, a mais completa e mais bem estruturada que encontrei:
«lat. ad noctem 'à noite, na noite passada', com a seguinte evolução segundo A. Nascentes: “anoite, com nasalação do a: *ãoite; com assimilação do a: õoite; com absorção da semivogal: õote; com crase: onte (ainda hoje pop.) e finalmente com a prolação da nasal: ontem.”; f.hist. 1391 ontem, 1391 otem, sXIV oonte, sXVom tem, 1713 hontem».
Etimologicamente insustentável
De acordo com esta explicação, a grafia “hontem” não é etimologicamente sustentável, pois a locução ad noctem não contém nenhum agá. No entanto, uma pesquisa no Corpus Lexicográfico do Português mostra que, entre 1599 e 1798, a forma “hontem” aparece registada em 12 obras, a maior parte delas dicionários, incluindo o célebre Vocabulario Portuguez e Latino (1712–1721), da autoria do padre Rafael Bluteau (1638–1734). No século XIX, torna-se mesmo a forma preferida e passa a constituir uma nova “tradição ortográfica”, como denota, por exemplo, o Moraes, referido pelo nosso consulente, e o Grande diccionario portuguez, ou Thesouro da lingua portugueza, do frade agostinho, teólogo, romanista e lexicógrafo português Domingos Vieira (1775–1857), que no terceiro volume (1873) apresenta esta forma, embora no quarto volume (1878) figure também a forma ontem, que remete para “hontem”, tal como acontece na obra de Moraes. Esta tradição manteve-se até à publicação do Formulário Ortográfico de 1911, que instituiu, no seu ponto IV, o seguinte:
«É conservado o h inicial, quando a etimologia o justifique, como em homem, humano, honra, hoje; mas abolido onde é erróneo, como em hontem, hir, hombro, que se escreverão ontem, ir, ombro.»
Razão tinha o escritor brasileiro Gabriel Bastos (1859–1950) quando, na sua obra Da mocidade á velhice (Passo Fundo, Tipografia Independencia, 1944), chamava ao agá «a letra mais vadia do alfabeto» (p. 83)!
Para entendermos os motivos destas grafias erróneas, importa considerar o seguinte:
a) Nem sempre a grafia é um espelho fiel da etimologia das palavras. Por exemplo, os vocábulos agora, erva (também referido pelo consulente), inverno e Espanha, só para dar quatro exemplos, bem poderiam escrever-se “hagora”, “herva”, “hinverno” e “Hespanha”, se atendêssemos apenas aos seus étimos latinos (hac hora, «nesta hora», herba, hibernum e Hispania, respetivamente). No entanto, a tradição ortográfica secular ditou a eliminação do agá desde os primórdios da língua, embora o Houaiss registe a forma “haguora”, atestada no século XV e mais tardia do que agora (século XIII).
b) Os conhecimentos etimológicos, bem como os critérios aplicados,nem sempre foram os mesmos ao longo da história da língua. No seu artigo História da ortografia portuguesa, David Gonçalves Lavrado distingue três períodos:
«1.º – FONÉTICO, das origens medievais (século XII) até meados do século XVI;
2.º –PSEUDO-ETIMOLÓGICO, de meados do século XVI até os primeiros anos do século XX;
3.º – HISTÓRICO-CIENTÍFICO, de 1904, data da publicação da Ortografia Nacional de Gonçalves Viana, até nossos dias.»
Como vimos anteriormente, com as datações apresentadas, a grafia “hontem” surgiu, prosperou e impôs-se precisamente no chamado período «pseudoetimológico», durante o qual a grafia de certas palavras, segundo David Gonçalves Lavrado, «Conquanto tivesse a pretensão de ser etimológica, […] estava eivada de equívocos e de formas absurdas, sem respaldo etimológico».
Na maior parte dos casos, meros bitaites…
É plausível, por isso mesmo, que a grafia com agá, neste caso, tenha sido motivada por considerações de ordem etimológica. É o que se depreende das explicações etimológicas – na maior parte dos casos, meros bitaites… – que se nos deparam em várias obras publicadas no século XIX e em inícios do século XX. Vejamos alguns exemplos, por ordem cronológica:
Francisco Solano Constancio (1777–1846), no seu Novo Diccionario Critico e Etymologico da Lingua Portugueza (Paris, Angelo Francisco Carneiro, 1836), aventa que “hontem” foi «formado de hoje, e ante» (p. 606)…
Francisco Adolfo Coelho (1847–1919), no segundo tomo (F-Z) do seu Diccionario Manual Etymologico da Lingua Portugueza (Lisboa, P. Plantier, 1890), dá «Lat. antediem» como étimo de “hontem” (p. 728)…
António Augusto Cortesão (1854–1927), pai do célebre historiador Jaime Cortesão (1884–1960), no primeiro tomo do seu Diccionário Completo (Histórico-Etymológico) da Língua Portuguêsa (Coimbra, França Amado, 1900), escreve o seguinte: «Segundo Dr. G. Guimarãis (Instituto, vol. XLV, p. 102) ontem provém da locução adverbial à-noute por intermédio de — ànoute > aonte > onte > ontem. Cf. o hisp. anoche, e a expressão pop. ontrodia < noutrodia; e vidè Rev. L., 5.º, p. 146. Esta etymologia foi combatida na Educação Nacional (3º, p. 422) ou, melhor, pretendeu-se substituir por esta: ontem < ho (hoc) — ante!» (p. 61)…
Gonçalves Viana (1840–1914), na sua obra Ortografia nacional; simplificação e uniformização sistemática das ortografias (Lisboa, Livraria Editora Viuva Tavares Cardoso, 1904), já anteriormente referida, diz que “hontem” «se deve escrever, como antigamente, ontem» (p. 18) e acrescenta, na sua ortografia fonetizante, que o agá «é devido a falsa analojia com hoje» (p. 407). Apesar de propugnar a forma ontem, apresenta, na mesma página, o étimo latino ha nocte («nesta noite»), que diz ter bebido no artigo Die Nasalvokale im Portugiesischen («As vogais nasais em português»), publicado em 1903 na revista Die Neueren Sprachen (XI, fasc. 3, p. 129-153), da autoria de Oskar Nobiling (1865–1912), filólogo alemão que viveu metade da sua curta vida no Brasil e publicou vasta obra sobre a nossa língua. A verdade é que esta etimologia, a ser genuína, até justificaria a grafia “hontem”, que Gonçalves Viana liminarmente rejeitava! Escreve ainda o filólogo português esta curiosa nota, sempre na sua ortografia fonetizante: «O povo diz onte, e não ontem; a nasalização final é o eco da que existe na sílaba tónica, e em analojia com vocábulos como homem, contem, de contar etc.» (p. 407).
José Timóteo da Silva Bastos (1852–1939), no seu Diccionario Etymologico, Prosodico e Orthographico da Lingua Portugueza (Lisboa, Parceria Antonio Maria Pereira Livraria Editora, 1912) garante que “hontem” provém «do lat. ante diem» (p. 636)…
João Ribeiro, (1860–1934) na sua Grammatica Portugueza (19ª edição, Livraria Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1920), grafando ainda “hontem”(o acordo ortográfico de 1911 não estava então ainda em vigor no Brasil), dá o étimo correto («ad + noctem»), mas acrescenta em nota de pé de página: «A etymologia de hontem não está averiguada. Têm sido propostas as origens hanc-noctem, hodie-ante, ou sómente ante.» (p. 334)…
À vontade do freguês
É à vontade do freguês: hoje ante, ho ante, ha nocte, hanc noctem, hodie ante. Uma destas etimologias — ou várias, separadamente… — terá levado ao estabelecimento de uma tradição ortográfica que perdurou perto de dois séculos, até ser arredada pela ciência filológica…
Outra questão pertinente tem que ver com a evolução semântica da locução latina ad noctem. Em latim clássico, a preposição ad exprimia a ideia de aproximação ou direção, tanto no espaço como no tempo. Assim, ad noctem queria dizer «até à noite», como no seguinte trecho de Júlio César (100 a.C.–44 a.C.), onde contrasta com o advérbio noctu («à noite, de noite»):
Illi aegre ad noctem oppugnationem sustinent; noctu ad unum omnes desperata salute se ipsi interficiunt (Gall., V, 37): «A muito custo lá conseguem suster o ataque até ao cair da noite; à noite, perdida a esperança de se salvarem, suicidam-se todos, do primeiro ao último».
Em latim tardio, porém, a preposição ad começa a adquirir novos matizes e a invadir o espaço semântico de outras preposições, pelo que não é de estranhar o seguinte passo de São Jerónimo (c. 347–420), em que ad noctem significa «à noite, de noite»:
Veritas Domini non adnuntiatur, nisi ad noctem: in die non potest adnuntiari (Tract. Psalm. 91.3): «A verdade do Senhor só se anuncia de noite: de dia não se pode anunciar».
Já na era moderna, num documento exarado por José María Domínguez, da Universidad de San Carlos de Guatemala, lê-se o seguinte: in Sancta Metropolitana Ecclesia ad noctem die 10 Decembris 1821 («na Santa Igreja Metropolitana, no dia 10 de dezembro de 1821, à noite»).
Julgo não haver dúvidas de que terá sido esta segunda aceção de ad noctem («à noite, de noite») que terá dado origem a anoche em castelhano e anuit em francês antigo (ambos com o significado de «ontem à noite») e a ontem. No caso do castelhano, tratou-se de uma mera restrição de sentido: o advérbio passou a referir-se não a uma noite qualquer, mas especificamente à noite imediatamente anterior. No caso do português, poderá ter ocorrido inicialmente a mesma restrição semântica, à qual se terá seguido uma extensão de sentido, passando o advérbio a referir-se não apenas à noite, mas a todo o dia imediatamente anterior. Não conheço, porém, qualquer documento que ateste que ontem terá significado inicialmente «ontem à noite».
Obs. – Nas transcrições feitas, manteve-se a grafia original.