DÚVIDAS

A expressão «ruço de mau pelo» (II)

A expressão «ruço de mau pelo» tem qualquer coisa a ver com o romance Rosso Malpelo de 1878 do escritor italiano Giovanni Verga?

O romance conta a história de Rosso Malpelo, um garoto ruivo que trabalha numa pedreira de areia vermelha na Sicília. Pressionado pelos preconceitos da mentalidade popular acerca das pessoas com cabelos ruivos, Roso Malpelo não encontra afeto nem mesmo junto da própria mãe.

Resposta

A expressão não se deve ao texto mencionado, que, em verdade, é um conto, e não um romance, que faz parte de um volume intitulado em italiano Vita dei Campi, do autor siciliano Giovanni Verga (1840-1922)1.

A expressão  «ruço de mau pelo» ou «ruço de má pelo» – em Portugal, frequentemente completado com a sequência «quer casar, não tem cabelo» –, encontra paralelo noutras línguas da Europa, como é o caso do italiano, só que em referência não a gente ruça, ou seja, de cabelo loiro, mas, sim, a pessoas de cabelo ruivo. Trata-se de um dito associado a uma superstição abordada num conjunto de apontamentos publicado em 1918 na Revista Lusitana (RL):

«Quanto à aversão manifestada contra os ruivos [nos] provérbios, parece que ela se funda na crença de que Judas era ruivo – crença corrente em Portugal e que em França deu origem à locução avoir un poil de Judas, isto é, ter os cabelos ruivos.» (José Maria Adrião, "Retalhos de um Adagiário", RL, vol. XIX, p. 42)

Acrescente-se que ruço pode significar não apenas «loiro», mas também «ruivo» em alguns dialetos portugueses (por exmplo, em Trás-os-Montes e no norte da Beira Interior)2 Além disso,  a literatura portuguesa do final da Idade Média também documenta o preconceito contra os ruivos, como sucede na Crónica de D. Fernando, de Fernão Lopes (1380-1460), segundo José Maria Adrião no artigo já citado:

«Vem a propósito um caso contado por Fernão Lopes, e que revela a má conta em que já no século XIV eram tidos os ruivos: Quando Henrique II, de Castela, deliberou invadir o nosso país, para responder à acção do rei português D. Fernando I, que, aliado com o duque de Lencastre, pretendia despojá-lo da coroa, alguns homens do seu conselho, mais tímidos e de vistas menos largas, opinavam que a guerra fosse adiada, alegando para isso várias razões. "El-rei, quando viu (diz Fernão Lopes) que todos eram daquele acordo, e nenhum desviava dele, deu-lhes em resposta dizendo: 'Ou vós todos estais bêbados, ou sandeus, ou sois traidores.' – 'Não já eu, senhor, disse o bispo porque não sou ruivo.' – 'Ah! bispo, disse el-rei, por mim dizeis vós isso'. porque el-rei era branco e ruivo. – 'Não, senhor, disse ele, mas por este que aqui está': a saber Pero Fernandez de Velasco, que estava junto com ele, que era um pouco como ruivo...'".»

O preconceito contra quem tem cabelo ruivo encontra-se até, talvez surpreendentemente, num adagiário sefardita, em ladino ou judeo-espanhol, sob a forma «Rozho de mal pelo, cavesa de codredo», correspondente ao espanhol «pelirrojo [ruivo] de mal pelo, cabeza de cordero» e ao francês «roux [ruivo] au mauvais poil, tête de mouton»3. E, quanto ao italiano, é ainda José Maria Adrião que parece dispensar informação relevante, reunindo alguns provérbios de diferentes regiões de Itália, dos quais se salienta um do Véneto, com clara afinidade com a  expressão portuguesa: «Rosso dal mal pelo, cento diavoli per cavèlo.»

Enfim, «ruço de mau/má pelo» é expressão antiga, que remonta à história sombria das superstições e dos preconceitos da velha Europa.

 

1 Não foi possível encontrar uma tradução deste conto para português. Uma versão em espanhol encontra-se nos Google Books.

2 Cf. A. M. Pires, Língua Charra: Regionalismos de Trás-os-Montes e Alto Douro, Lisboa, Âncora Editor, 2013 e Vítor Fernando Barros, Dicionário de Falares das Beiras, Lisboa, Âncora Editora/Edições Colibri, 2010.

3  Jesús Cantera Ortiz de Urbina, Diccionario Akal del Refranero Sefardí, Madrid, Ediciones Akal, 2004, p. 323, onde se esclarece que o dito se refere aos ruivos, atribuindo-lhes um caráter difícil e mal-intencionado. Nesta obra registam-se ainda variantes com a forma ruvio, que será cognata do português ruivo, embora pela forma se aproxime do castelhano rubio, «loiro».

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