A língua latina possuía os gêneros masculino, feminino e neutro. Este último designava objetos ou seres concebidos como inanimados e desapareceu no latim vulgar e, por tabela, nos idiomas dele derivados como o nosso. Assim, em português, os substantivos, que designam seres animados dos sexos masculino, feminino, e mesmo seres inanimados sem sexo, passaram a ser apenas masculinos ou femininos.
Em português, portanto, o substantivo tem gênero que exprime o sexo real ou fictício do ser designado. Por via de regra, quando se refere a um ser vivo, o substantivo tem um gênero que corresponde ao sexo desse ser. Todavia quando indica um objeto inanimado e, portanto, assexuado, o substantivo tem um gênero convencional e nada mais. Este ser sem sexo passa a ser, convencionalmente apenas, masculino ou feminino.
Resumindo, em nosso idioma, os seres podem ter um sexo real ou fictício.
Pela lógica, apenas os nomes que designam seres de sexo real deveriam sofrer flexão de gênero, do masculino para o feminino e vice-versa, já que os seres de sexo real são, normalmente, macho ou fêmea. Assim, com o mesmo radical, flexionam-se: menino/menina, leão/leoa, imperador/imperatriz, senhor/senhora, etc., etc., etc. Com radicais diferentes: pai/mãe, homem/mulher, cavalo/égua, etc., etc., etc. Os seres de sexo fictício, meramente gramatical, não deveriam ter nomes que se flexionassem quanto ao gênero.
Já há muito tempo, manuseando o famoso Dicionário Aurélio, deparei-me com palavras que pareciam contrariar o que disse no parágrafo anterior, pois eram ficticiamente femininas e derivavam, ao que tudo indica por flexão de gênero, de outras de sexo masculino igualmente fictício. O inverso também ocorria. Assim de bacio, banco, horto, ramo, se fizeram bacia, banca, horta, rama; do mesmo modo, de bolsa, cana, casaca, mata, se formaram bolso, cano, casaco, mato.
Passei a interessar-me por estas palavras e colecioná-las. Abaixo transcreverei esta pequena coleção.
Percebi que, em casos tais, os vocábulos derivados, sejam masculinos ou femininos, designam freqüentemente algo parecido, semelhante, mas não igual ao que é designado pela palavra derivadora. Ou então, designa a mesma coisa, porém em tamanho maior ou menor. Exemplos: 1.° – “Horta” (vocábulo derivado) designa uma coisa parecida com a coisa designada pela palavra derivadora, “horto”, que é o mesmo que jardim. Uma horta não é semelhante a um jardim? 2.º – “Cano” (termo derivado) é o nome de algo que se parece no formato ao objeto designado pelo vocábulo derivador “cana”. Um cano não lembra um cana? 3.° – “Saca” origina-se de “saco”, designando um saco grande. 4.º – “Machada”, palavra proveniente de “machado”, é o mesmo que machado pequeno.
Também observei que eram todos vocábulos de formação exclusivamente vernácula. Todas também eram palavras terminadas por “a” e “o”, não havendo masculinas e femininas com outras terminações como não raro ocorre no nosso idioma.
Nunca soube se era mesmo por flexão de gênero que haviam sido formados. É por esta razão que hoje consulto os esclarecidos consultores do Ciberdúvidas para lhes indagar se nos casos acima e abaixo relacionados houve mesmo, ou não, flexão de gênero, talvez anômala.
Gostaria de saber também se ainda nos dias atuais formam-se palavras por este processo ou não, pois suspeito que este modo de criar palavras novas tem que ver com a mentalidade dos homens do passado, os antigos falantes da língua portuguesa, que afinal foram os que as criaram.
Peço que os doutíssimos consultores do Ciberdúvidas opinem nos casos em que, na lista abaixo, o étimo da palavra for controvertido. Também rogo aos mesmos sábios que, se possível for, enriqueçam ainda mais a lista de termos abaixo relacionados acrescentando-lhe outros vocábulos surgidos pelo mesmo processo.
Quero também registrar que há casos que se parecem com o das palavras relacionadas na lista abaixo, mas são diferentes.
Umas já vieram do latim com essa duplicidade de formas masculinas e femininas. Exemplos: ovo/ova, fruto/fruta, signo/signa, pimento/pimenta, vinho/vinha.
Quando os vocábulos derivam de verbo, parece que não há flexão de gênero, mas formas diferentes de se criar substantivos, usando terminações ou sufixos diferentes. Exemplos: do verbo “cercar”, se fizeram “cerco” e “cerca”; de “gritar”, surgiram “grito” e “grita”; de “riscar”, derivaram “risco” e “risca”.
Quando as duas formas têm exatamente o mesmo significado, parece ter ocorrido tão-somente variação. Uma das duas palavras é variante da outra. Exemplos: pértigo/pértiga, tralho/tralha, adenda/adendo.
Há também os casos dos femininos substantivados de adjetivos masculinos: “reta” de “reto”, “revolta” de “revolto”, “sebenta” de “sebento”, “baixa” de “baixo”. E ainda feminino substantivado de verbo no particípio: “madrugada”, feminino substantivado de “madrugado”, particípio de “madrugar”.
Existem as palavras de origem e sentido diferente: esporo/espora, balança/balanço, prega/prego, baia/baio, casso/cassa, cravo/crava, etc.
Sobre os casos elencados nos últimos cinco parágrafos, que podem vir a ser confundidos com os abaixo relacionados, peço os esclarecimentos dos cultos consultores. Havendo outros casos que podem gerar confusão, gostaria que fossem outrossim mencionados.
FEMININAS DE ORIGEM MASCULINA
BACIA (de bacio).
BANCA (de banco).
BARAÇA (de baraço).
BARRANCA (de barranco).
BICA (de bico).
BORDA (de bordo?). O ciberdicionário da Porto Editora diz que “borda” e “bordo” vêm, provavelmente, do frâncico “bord”, através do francês “bord”. A 2.ª edição do Aurélio faz as duas derivar do germânico “bord”. Já para o Michaelis, “borda” provém de “bordo”.
BRAÇA (de braço). Esta a definição do ciberdicionário da Porto Editora. Já para o Aurélio, “braça” vem do latim “brachia”, pl. de “brachin”, "braço".
BRONCA (de bronco).
BUEIRA (de bueiro).
CALDA (de caldo). Esta a definição do Michaelis. Aurélio e Porto Editora dão outra etimologia.
CAMPA (de campo).
CANCELA (de cancelo).
CAPÍTULA (de capítulo). Esta a definição do Aurélio. Para o ciberdicionário da Porto Editora, “capítula” vem do lat. “capitula”, plural de “capitulum”, ‘capítulo’.
CAPUCHA (de capucho).
CEPA (de cepo).
CINTA (de cinto).
CORNA (de corno).
FRASCA (de frasco).
GALHA (de galho). Há “galho”, provavelmente do latim vulgar “galleu”; e “galha”, possivelmente do latim “gallea”, isto é, “nuce gallea”, ‘noz de galha’. “Galhas”, plural, significa ramagem, ramada, rama. No entanto, há no Brasil, a palavra “galha”, com o sentido de “galho”. Trata-se de um termo popular, usado por pessoas incultas. Parece que é ou já foi largamente empregado em vastas regiões do Brasil. Neste caso, “galha” é flexão de gênero de “galho” ou é uma simples variante desta última palavra?
HORTA (de horto).
JALECA (de jaleco).
LADA (de lado). Esta a definição do Aurélio. Para o ciberdicionário da Porto Editora, “lada” é termo de origem obscura.
LIÇA (de liço).
LOMBA (de lombo).
MACHADA (de machado).
MANTA (de manto).
MOLOSSA (de molosso).
MORANGA (de morango).
NACA (de naco). Definição do Aurélio. Para o dicionário em linha da Porto Editora, tanto um como outro termo são de origem obscura.
OLHA (de olho). Esta a etimologia do Aurélio para “olha” no sentido de “caldo gordo” ou “gordura do caldo”. O Porto Editora apresenta outro étimo.
PABOLA (de pábulo).
PINGA (de pingo). Este o veredito do Aurélio. Já o Porto Editora da Web faz as duas palavras derivar do verbo pingar.
POÇA (de poço).
POIA (de poio).
POMA (de pomo).
PORRA (de porro).
PINGA (de pingo). A segunda edição do Aurélio faz “pinga” derivar de “pingo”. Para o dicionário da Porto Editora, “pinga”, assim como “pingo”, origina-se do verbo “pingar”. O mesmo diz o Michaelis.
PLANA (de plano).
PRECINTA (de precinto). O Porto Editora faz estas duas palavras derivar, respectivamente, do latim “praecincta-” e “praecincto-”, ambos particípio passado do verbo latino “praecingere”.
PÚCARA (de púcaro). Opinião do porto Editora, porém, para o Aurélio, “púcara” é variante de “púcaro”.
RAMA (de ramo).
RIA (de rio).
RIÇA (de riço).
SACA (de saco).
SAPATA (de sapato).
TAMANCA (de tamanco).
TALA (de talo?).
TOLDA (de toldo).
TORA (de toro). Esta é a etimologia da segunda edição do Aurélio. Já para o Michaelis, tora vem do latim toru.
VALA (de valo). Esta a origem apresentada pelo Aurélio. O Porto Editora em linha dá-lhe outra origem.
MASCULINAS DE ORIGEM FEMININA
BAGO (de baga).
BANDO (de banda).
BARCO (de barca).
BARRACO (de barraca).
BOCO (de boca).
BOLSO (de bolsa).
BONECO (de boneca).
BOTELHO (de botelha).
CABAÇO (de cabaça).
CABANO (de cabana).
CABEÇO (de cabeça). O Porto Editora eletrônico tem outra versão para este caso.
CACHOEIRO (de cachoeira). O temo “cachoeiro” é brasileirismo do Estado do Espírito Santo.
CANASTRO (de canastra).
CANDEIO (de candeia).
CANECO (de caneca?). O Aurélio não define a etimologia de “caneco”. O Michaelis, por turno, diz que “caneca” vem de latim canna + -eca, ao passo que, “caneco” provém, ainda segundo este dicionário, do lat. canna + -eco. Qual a verdadeira etimologia de “caneco”? O ciberdicionário da Porto Editora desconhece-o.
CANELO (de canela).
CANO (de cana).
CAPOEIRO (de capoeira).
CARGO (de carga). O Porto Editora tem outra opinião.
CASACO (de casaca).
CASTANHO (de castanha). O Porto Editora também aqui é voz discordante.
CASULO (de casula). Etimologia do Porto Editora. O Aurélio dá outras origens aos dois vocábulos.
CEBOLO (de cebola).
CERDO (de cerda). Esta a definição do Aurélio. O dicionário em linha da Porto Editora dá outra etimologia a “cerdo”: “Do vasco cherri, zerri, ‘porco’, pelo cast. cerdo, ‘id.’ ”
CESTO (de cesta).
CHINELO (de chinela).
CIMO (de cima).
CHOURIÇO (de chouriça). Esta é a definição do Aurélio. Entretanto, para o dicionário eletrônico da Porto Editora, é justamente o contrário, isto é, “chouriça” é que vem de “chouriço”.
COCO (de coca). Etimologia apresentada pelo Aurélio. Alguns dão outra etimologia: o grego “kókkos”.
COPO (de copa). Etimologia do Aurélio e do Michaelis. O ciberdicionário da Porto Editora dá outras etimologias, uma para cada palavra.
CORTIÇO (de cortiça).
BORRACHO (de borracha). Aqui a opinião do Aurélio. O Porto Editora, todavia, pensa de outra forma.
ESTOFO (de estofa).
ESTRELO (de estrela).
FESTO (de festa). Neste caso, “festo” significa uma festa grande.
FOSSO (de fossa). Para o dicionário eletrônico da Porto Editora, “fosso” vem de “fossa”. Para o Aurélio, provém do italiano “fosso”. Já para o Michaelis, é derivado do latim “fossu”.
GADANHO (de gadanha).
GAIOLO (de gaiola).
GAMELO (de gamela).
GIGO (de giga).
GORRO (de gorra).
JARRO (de jarra).
LARANJO (de laranja).
MAÇO (de maça).
MADEIRO (de madeira).
MANGO (de manga).
MARCO (de marca).
MATO (de mata).
NIGELO (de nigela). O Porto tem outra opinião.
PANTUFO (de pantufa).
PERNO (de perna). Esta é a versão do Porto Editora. O Aurélio, por turno, diz que “perno” vem do catalão “pern”. Com a palavra o Ciberdúvidas.
PÊRO (de pêra). Definição do Aurélio. Para o dicionário eletrônico da Porto Editora, “pêro” vem do latim “piru”.
PIO (de pia). Pia grande, na qual se pisam uvas.
PIPO (de pipa).
POPÔ (de popa).
PUBO (de puba). “Pubo” é a forma masculina deste adjetivo, a forma feminina é também “puba”.
RELHO (de relha).
RODELO (de rodela).
ROLHO (de rolha). Esta a etimologia do Aurélio. O Porto Editora em linha diz que “rolho” vem do castelhano “rollo”, ‘rolo’.
SAIO (de saia). O Aurélio diz que “saio” vem de “saia” com inflexão do gênero de homem. O ciberdicionário da Porto Editora afirma que “saio” vem do latim “sagu”.
SANCO (de sanca).
SERRO (de serra). Definição do ciberdicionário da Porto Editora. Aurélio, todavia, diz que “serro” vem do “cerro”, com “s” por inflexão de “serra”.
SARDO (de sarda).
TAMPO (de tampa). O Aurélio diz que “tampo” é variante de “tampa”.
TELHO (de telha). Esta é a definição do ciberdicionário da Porto Editora. Já para o Aurélio, “telho” vem do latim “tegulu”, ‘telhado’.
TRALHO (de tralha). O Aurélio afirma que “tralho” é variante de “tralha”.
TRANCO (de tranca). Esta a definição do ciberdicionário em linha da Porto Editora. O Aurélio diz que “tranco” é variante de “tranca”.
URCO (de urca).
VASSOURO (de vassoura).
VEIO (de veia).
Muito obrigado.
Encontrei este excerto acerca da personagem Blimunda, da obra Memorial do Convento, de José Saramago: «... atribui a Blimunda capacidades intuitivas e ecovisionárias.»
No entanto, não conheço o significado do adjectivo "ecovisionárias", e este não consta do dicionário que consultei. Agradecia o vosso auxílio!
Apesar de ser um tema (quase) debatido à exaustão, persiste no meu espírito uma dúvida quanto à expressão «curriculum vitae», aliás, quanto ao seu plural.
Se a tradução para português desta expressão é «currículo da vida», o plural da mesma seria «currículos das vidas». Afinal, trata-se de vários currículos, respeitantes a várias vidas.
Então, porquê o plural latino «curricula vitae»? Porque não «curricula vitarum»?
Agradeço muito quaisquer esclarecimentos que possam dar sobre esta matéria.
Deve dizer-se, em minha opinião, pedomania, e não pedofilia (pedómano, aquele que a pratica, e não pedófilo; à semelhança de cleptómano e cleptomania; claustrófobo e claustrofobia), atendendo à raiz grega filo, «que é amigo» (eu não sei grego). Ora, no caso em apreço, essa característica é de enfermidade, tomando aspecto negativo, doentio, do foro médico-psiquiátrico.
Muito obrigado.
Eu sei que a palavra igualzito não existe. Porém, estou com uma dúvida: recentemente minha esposa deu à luz uma menina, que por sua vez saiu parecida comigo. Então resolvi colocar no meu carro um adesivo com a frase «Saiu igualzito ao pai». Foi o que bastou para gerar a maior polêmica na família, pois eles acham que o português aí aplicado está errado, que deveria ser «igualzita». Eu acho que, como a palavra é derivada de igual, ela por sua vez carrega as características da mesma; como igual não tem gênero, e o que diferencia o masc. do fem. é a próxima palavra: «ao» ou «à», no caso de feminino, então acredito que minha frase está correta, lembrando que eu sei que a palavra igualzito não existe. Aguardo uma resposta, e desde já agradeço.
Qual o grau aumentativo de rico?
Qual é o termo mais usado para «aquele que faz extorsão»? Extorquidor, extorsionário, extorsor, extortor, ou outro?
Muito obrigado.
Qual o superlativo absoluto sintético da palavra fantástico?
Ao resolver uma prova de aferição-tipo com os meus alunos, uma das perguntas mandava tomar em consideração a frase «a mãe perdeu a paciência...» e pedia a classe e as subclasses da palavra paciência. Quanto à classe, é um nome ou substantivo; quanto às subclasses, aprendi (tenho 54 anos) que os substantivos abstractos tinham apenas esta subclasse e que os concretos é que podiam ser próprios, comuns e colectivos. No entanto, as soluções da prova apresentavam a palavra também como um substantivo comum. Será assim?
Podem usar-se indistintamente os termos "radiomodelismo" e "rádio-modelismo"?
Obrigada.
Este é um espaço de esclarecimento, informação, debate e promoção da língua portuguesa, numa perspetiva de afirmação dos valores culturais dos oito países de língua oficial portuguesa, fundado em 1997. Na diversidade de todos, o mesmo mar por onde navegamos e nos reconhecemos.
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