O emprego da forma dativa do pronome pessoal, lhe, em português europeu, pode ocorrer apenas em substituição dos complementos que têm uma função sintáctica de objecto indirecto (ou complemento indirecto), sendo o complemento directo o substituível pela forma acusativa o, a, os, as.
A ocorrência mencionada na pergunta (*«Ele viu-lhe ontem à tarde»), agramatical na variedade europeia do português, ocorre na variedade brasileira. Num estudo que foca as diferenças entre a variedade brasileira e a variedade europeia do português, Maria Helena Mira Mateus destaca, nos níveis morfológico e sintáctico, a utilização dos clíticos de terceira pessoa: «O PB vernacular perdeu os clíticos de terceira pessoa e apresenta, ao lado do objecto directo nulo (1), construções com os pronomes ele/ela e lhe (2).» (Mateus 2002: 276).1
Assim, à frase do português europeu «Eu quero conhecê-lo» corresponde a frase do português brasileiro «Eu quero lhe conhecer». Este tipo de ocorrência surge não só nos falantes comuns, mas também em textos musicalmente consagrados, como atestam os casos de Toquinho/Vinicius [«(...) Tomara que a tristeza lhe convença / Que a saudade não compensa / E que a ausência não dá paz»] e de Beth Carvalho, em Coisinha do Pai [«(...) tão formosa da cabeça aos pés / vou lhe amando e adorando / digo mais uma vez / agradeço a Deus porque lhe fez (...)»]. São fenómenos estudados no âmbito da variedade e mudança do português brasileiro.
1 Mateus, Maria Helena Mira (2002): «Se a língua é um fator de identificação cultural, como compreender que uma língua viva em diferentes culturas?», in Henriques, Claudio Cezar & Pereira, Maria Teresa Gonçalves (orgs), Língua e Transdisciplinaridade, São Paulo, Editora Contexto, pp. 263-282.