Maria Eugénia Alves - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Maria Eugénia Alves
Maria Eugénia Alves
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Professora portuguesa, licenciada em Filologia Românica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, com tese de mestrado sobre Eugénio de Andrade, na Universidade de Toulouse; classificadora das provas de exame nacional de Português, no Ensino Secundário. 

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Não tenho total certeza do significado do termo «descarga de consciência», mas entendo que significa ter a certeza de que estou de consciência tranquila. Por exemplo, penso que é como quando vamos para a rua e nos lembramos se deixámos a porta de casa bem fechada, e então voltamos atrás somente para ter a certeza de que, de facto, deixámos mesmo a porta fechada. Mesmo se antes de voltar atrás, temos a noção de que fechámos a porta. Resumindo, julgo que descarga de consciência é mesmo para estarmos seguros de que estamos mesmo de consciência tranquila. É como se fosse um comprovativo. É como um carimbo. Pergunto também se é descarga (com a) ou descargo (com o) de consciência.

Agradeço o vosso esclarecimento. 

Resposta:

Dicionário Infopédia, entre outros*, explica claramente o significado da locução «por descargo de consciência»: para tranquilidade de espírito. Está, pois, em conformidade com os exemplos que o consulente fornece na pergunta para o uso da referida expressão.

Já a alternativa feminina, que cita, não é válida, pois, sendo uma locução, esta fica invariável. Deste modo, sublinha-se que é uma expressão usada apenas no masculino.

* São os casos – assinalados na resposta anterior sobre este mesmo tema – do Dicionário Eletrônico Houaiss, do Dicionário Prático de Locuções e Expressões Correntes, de Emanuel de Moura Correia e Persília de Melim Teixeira,, e da obra de  Antenor NascentesTesouro da Fraseologia Brasileira.

Pergunta:

Gostaria de saber como se chama uma loja só de cocktails, em português europeu. Coctelaria, coquetelaria?

Muito obrigada!

Resposta:

O termo coquetelaria (e a alternativa citada coctelaria) não se encontra ainda registado nos dicionários do português europeu, nomeadamente no Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da  Academia das Ciências de Lisboa, e também não aparece no Vocabulário Ortográfico Português (VOP)*,  pelo que a loja a que, cremos, se refere, isto é, onde se servem bebidas, continua a chamar-se bar

Já a loja de vendas de  bebidas é garrafeira.

Note-se que o termo coquetelaria se usa no Brasil para aludir à arte criativa da mistura das bebidas. No Dicionário Houaiss, encontramos a seguinte definição: «arte de preparar bebidas».

Formou-se a partir do nome coquetel (aportuguesamento do inglês cocktail): coquetel + -aria: coquetalaria.

Outra palavra derivada: coqueteleira [coquetel +-eira], «recipiente alongado, com tampa, destinado a misturar os ingredientes de um coquetel (bebida)». Encontram-se igualmente abonados no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da Academia Brasileira de Letras: aqui

Pergunta:

Tenho uma dúvida na divisão e classificação da seguinte frase: «Caso não possa comparecer, agradecemos que nos comunique antecipadamente». 

«Caso não possa comparecer» – oração subordinante – «agradecemos que nos comunique antecipadamente.»

Posso dizer que existe ainda uma oração subordinada substantiva completiva em «que nos comunique antecipadamente.»?

 

Muito obrigada pela ajuda.

Resposta:

Na frase «Caso não possa comparecer, agradecemos que nos comunique antecipadamente», há três orações:

Caso não possa comparecer – oração subordinada adverbial condicional

agradecemos – oração subordinante

que nos comunique antecipadamente – oração subordinada substantiva completiva

Pergunta:

Na seguinte enunciado «Florestas devastadas, solo, ar e água contaminados, fauna em extinção - tudo faz crer o fim, futuros desertos», em futuros desertos, poderia haver dupla interpretação, isto é, futuro poderia ser adjetivo do substantivo deserto = deserto que há de vir; porém, poderíamos pensar no futuro que será despovoado, desabitado. Mesmo pelo contexto, poderíamos pensar que o futuro será desértico ou o deserto será vindouro. Estaria correto o pensamento?

Resposta:

Concordamos com a apreciação sobre a locução «futuros desertos».

A interpretação da locução é aberta a leituras várias, como refere, o que não é infrequente em análise semântica.

Por um lado, os futuros desertos são o desenlace de uma atuação irresponsável do homem que, ao devastar as florestas e ao contaminar os solos, provoca o fim, traduzido de forma realista pela expressão: o solo ficará deserto, com toda a certeza. É a concretização nefasta da ação do Homem. Toma-se aqui futuros como adjetivo que qualifica o nome desertos. 

Por outro lado, num alargamento de sentido da locução, poderemos lê-la como uma ideia mais abstrata do que será previsivelmente a Terra, nesta caminhada destruidora para o futuro: tudo será desértico, despovoado, numa desalentada e catastrófica visão desse tempo futuro. Neste sentido último, é quase poética a expressão, enquanto, no primeiro, é mais realista. Mas o que determina a diferença semântica é que neste caso, futuros é nome e retrata a situação dos anos vindouros, qualificado, agora, pelo adjetivo desertos.

Nesta troca das classes de palavras residem as leituras várias da locução.

Pergunta:

«O povo da Cidade de Tomar reuniu-se e, pela primeira vez, elegeu como mordomo da Festa dos Tabuleiros uma mulher.»

Sei que o feminino de mordomo é governanta, quando aplicado à gestão de uma casa, que não é o caso. Penso que a forma correta é mordomo, tanto para o masculino como para o feminino, mas como já vi diversas pessoas escreverem mordoma, gostaria da vossa ajuda para esclarecimento.

Muito obrigado.

Resposta:

Encontra-se a definição de mordomo, no Dicionário Houaiss, para este caso, a aceção de «aquele que organiza e patrocina festas da igreja».

Festa dos Tabuleiros é a versão mais recente da ancestral festa em honra do Espírito Santo, para a qual o mordomo era escolhido com o objetivo de organizar o acontecimento. Trazida a tradição até aos nossos dias, foi este ano eleita pela primeira vez uma mulher para desempenhar essa função. Os habitantes de Tomar rapidamente resolveram a questão linguística, fazendo o feminino da norma: mudando o o em a, isto é, mordoma.

Como temos em várias respostas e outros textos no Ciberdúvidas (Cf. Textos Relacionados, ao lado), na língua portuguesa há diversos outros casos de rápida adaptação, relacionadas sobretudo com cargos e profissões tradicionalmente desempenhadas por homens, em que o feminino se fez durante um tempo apenas com a mudança do artigo, deixando a nome no masculino. Exemplos: a primeiro-ministro, a juiz, a bombeiroa carteiro, etc. Só mais tarde, depois de um certo tempo de uso linguístico, os femininos desses nomes entraram de pleno direito nos dicionários: a primeira-ministra, a juízaa bombeira,