Eunice Marta - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Eunice Marta
Eunice Marta
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Licenciada em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre (Mestrado Interdisciplinar em Estudos Portugueses) pela Universidade Aberta. Professora de Português e de Francês. Coautora do Programa de Literaturas de Língua Portuguesa, para o 12.º ano de escolaridade em Portugal. Ex-consultora do Ciberdúvidas e, atualmente, docente do Instituto Piaget de Benguela, em Angola.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Estando em terra, chego ao Céu voando;

num’ hora acho mil anos, e é de jeito

que em mil anos não posso achar um´ hora.

Camões

Solicitava o favor de me esclarecer quanto à classificação da oração «que em mil anos não posso achar um´ hora».

Resposta:

A oração indicada pela consulente «exprime uma consequência da intensidade de uma qualidade e da quantidade do processo descrito na oração matriz [subordinante]» (Mira Mateus et al., Gramática da Língua Portuguesa, Lisboa, Caminho, 2003, p. 754), razão pela qual tem características de uma oração subordinada consecutiva. Repare-se na definição formulada pelo Dicionário Terminológico: «Subordinada adverbial que exprime a consequência de um facto apresentado na subordinante; em alguns casos, exprime-se a consequência do grau em se verifica dado facto apresentado na subordinante.»

O sujeito poético exterioriza que o seu estado é de tal forma paradoxal e forte, que «numa hora acha mil anos» e, como consequência/resultado/fruto disso, não consegue o contrário, isto é, achar uma hora em mil anos.

No entanto, a oração é introduzida pela locução conjuncional «de jeito que» — equivalente a «de forma que», «de maneira que», «de modo que» — locuções estas que iniciam as orações consecutivas. Importa referir que «a tradição gramatical considera como consecutivas apenas as orações introduzidas por que na dependência de tal, tão, tanto, tamanho e ainda as orações iniciadas pelas locuções conjuncionais "de forma que", "de maneira que", "de modo que", "de sorte que"» (Mira Mateus, op. cit.).

Pergunta:

A palavra exclamou é esdrúxula, ou aguda?

Resposta:

A forma verbal (de pret. perf., na 3.ª pes. do sing.) exclamou tem a sílaba tónica na última sílaba [mou], pois o acento tónico recai na terminação, tal como exclamar, o que significa que se trata de uma palavra aguda ou oxítona.

Pergunta:

Surgiu-me a seguinte dúvida: na frase «O João deu o livro aos pais», se quisermos substituir o GN «o livro» pelo pronome pessoal o, com a função sintática de complemento direto, e o GP «aos pais» pelo pronome pessoal lhes, com a função de complemento indireto, e depois quisermos contrair os dois pronomes, como é que fica a frase?

Resposta:

Com a pronominalização do complemento direto («o livro» – sintagma nominal) e do indireto («aos pais» – sintagma preposicional), a frase tem a seguinte forma:

«O João deu-lho» (lho = lhes + o; lhes = c. ind. + o = c. d.).

Nota: Aconselhamos a leitura de várias respostas publicadas sobre este tema, como, por exemplo: A pronominalização de complementos direto e indireto; Pronominalização e contração de pronomes; Análise morfológica e análise sintáctica + pronominalização verbal.

Pergunta:

Na frase «Restam-nos o mar universal e a saudade» (Pessoa), qual a função sintática do constituinte «o mar universal e a saudade»?

Resposta:

O constituinte «o mar universal e a saudade» é sujeito (composto) da frase «Restam-nos o mar universal e a saudade» do poema Prece, de Mensagem (Fernando Pessoa).

A dificuldade coloca-se, decerto, devido ao facto de o constituinte se encontrar em posição pós-verbal, contrariando a ordem frásica habitual da língua portuguesa, pois, geralmente, o sujeito ocorre na primeira posição argumental da frase, em situação pré-verbal. Mas repare-se que é essa a expressão que desencadeia a concordância verbal (isto é, é o sujeito gramatical), pois o verbo/predicado está na 3.ª pessoa do plural, tal como dita a regra de concordância com o sujeito composto.

Para que não haja dúvidas, importa recorrer-se aos testes de identificação do sujeito, propostos por Inês Duarte, no cap. 10 da Gramática da Língua Portuguesa (Lisboa, Caminho, 2003, pp. 283-284), de Mira Mateus et al.:

a) O constituinte com a relação gramatical de sujeito pode ser substituído pela forma nominativa do pronome pessoal, se for de natureza nominal, ou por uma forma tónica neutra do pronome demonstrativo:

 

«Restam-me o mar universal e a saudade.»

 

«Restam-me isto e aquilo.»
«Resta-me isso.»

 

 

 

b) Pode construir-se a estrutura pseudoclivada segundo o esquema O que SV [sintagma verbal] ser

Pergunta:

«Amigos é o que não lhe falta.»

Nessa frase, o predicativo do sujeito é o pronome demonstrativo o? «Que não lhe falta» é oração subordinada adjetiva?

Resposta:

A análise sintática que o consulente nos solicita implica que se tenha em conta mais do que uma perspetiva gramatical.

Portanto, se nos limitarmos a seguir a gramática tradicional, o pronome demonstrativo o é considerado um «pronome substantivo, [uma vez que] vem determinado por uma oração» (Cunha e Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, Lisboa, Sá da Costa, 2002, p. 340). Assim, o é um elemento autónomo do pronome relativo que, introdutor da oração subordinada (adjetiva) relativa. Perante esta análise, o predicativo do sujeito seria o pronome o, tal como nos afirmam Cunha e Cintra: «o pronome demonstrativo o (= aquilo) funciona como predicativo» (idem, p. 136), dando como exemplos:

«Cada coisa é o que é.» (Fernando Pessoa, Obra Poética, 175)

«Eu era o que eles me designassem.» (Nelida Piñon, O Calor da Coisas, 13)

Segundo esta perspetiva, «que não lhe falta» é classificada como oração subordinada adjetiva, pelo facto de ser «introduzida por um pronome relativo que) e exerce a função de adjunto adnominal de um pronome antecedente [o = aquilo] (idem, p. 598).

No entanto, vários linguistas consideram que a sequência «o que» forma uma unidade (Peres e ...