Eunice Marta - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Eunice Marta
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Licenciada em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre (Mestrado Interdisciplinar em Estudos Portugueses) pela Universidade Aberta. Professora de Português e de Francês. Coautora do Programa de Literaturas de Língua Portuguesa, para o 12.º ano de escolaridade em Portugal. Ex-consultora do Ciberdúvidas e, atualmente, docente do Instituto Piaget de Benguela, em Angola.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Lector in Fabula é o título de um livro de Umberto Eco. Gostaria de saber qual seria a melhor tradução desse título para o português. Algo como: «[o papel de] o leitor na fábula». Qual o sentido etimológico de fábula mais preciso nesse caso?

Obrigado.

Resposta:

De facto, provoca estranheza o título de um livro contemporâneo em latim. E, decerto, não foi por acaso que Umberto Eco o escolheu, jogando com a multiplicidade de sentidos que daí se podem retirar.

 

Fábula (< fabula, ae), etimologicamente, é palavra rica em sentidos: «vozes do povo; boatos; questões privadas; assuntos de família; narração sem passado histórico; conto; peça de teatro» (José Pedro Machado, Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, 6.ª ed., Lisboa, Ed. Horizonte, 1990).

Por sua vez, o Dicionário Latino-Português apresenta-nos ainda outras propostas para tradução da palavra latina fabula, ae: «1. Conversação; objecto ou assunto de conversação; narração. 2. Narração dialogada e posta em cena; peça teatral; 3. Narração mentirosa ou fictícia; fábula; apólogo; historieta. 4. Conto; história; mentira. 5. Sombra; ser sem realidade; palavra vã. 6. Poema» (Francisco Torrinha, Dicionário Latino-Português, 3.ª ed., Ed. Maranus, 1945, pp. 222-223).

Será, portanto, preciso fazer-se uma leitura muito atenta à obra para que se possa estabelecer relações entre o seu conteúdo e o título. E se o próprio autor decidiu não o traduzir para a sua própria língua, que legitimidade teríamos nós de o fazer? Não estaríamos a violar a essência da expressão latina lector in fabula? Não quererá Umberto Eco, com tal expressão, gerar em nós, leitores, a tentação de se procurar descodificar o verdadeiro sentido desse título, lendo e relendo a obra? Quantas traduções permitirá tal expressão? O leitor na narração (como o consulente propõe)? Leitor em narração? Leitor em conversa? Leitor em peça? Leitor em diálogo? Nenhuma destas propostas parece corresponder a Lector in Fabula. Qualquer tradução é outra expressão que n...

Pergunta:

Gostaria de saber em que casos se usam estas duas locuções.

Resposta:

Antes de se formular a norma de utilização das duas construções, importa reflectirmos sobre os seguintes casos de uso das duas hipóteses apresentadas:

1 – «Ela será julgada por todo o seu comportamento anterior, independentemente da sua participação no acto em causa.»

2 – «Todos os indivíduos terão as mesmas oportunidades, independentemente da sua religião ou das suas crenças políticas.»

3 – «Independentemente do que tenha feito, ela será julgada por todo o seu comportamento anterior.»

4 – «Todos os indivíduos terão as mesmas oportunidades, independentemente do que pensem, sonhem ou creiam.»

5 – «Ele é um bom profissional, independentemente de ser uma má pessoa.»

6 – «Tu serás compensada pelos serviços que prestaste, independentemente do que se passou entre os elementos da equipa.» 

7 – «Não o receio, independentemente de que tipo de pessoa venha a revelar-se.»

Perante estes exemplos, podemos inferir que «independentemente de/do(s)/da(s)» se usa antes de uma expressão nominal (nome, substantivo – 1, 2) ou de um verbo no infinitivo (5), enquanto «independentemente de/do que» introduz uma frase (3, 4, 6, 7).

Pergunta:

Lendo Mau Tempo no Canal, de Vitorino Nemésio (edição da Relógio de Água Editores, Lisboa, 2004), encontro frases, palavras e expressões que desconheço.

Muito grato ficava se me pudessem esclarecer qual o seu significado.

Assim:

Pág. 124, Capítulo X: «sinais dobrados».

Pág. 126, Capítulo X: «dormir a lastro».

Pág. 138, fim do Capítulo XI: «... como Nós-Padre e Nós-Pedro que é tudo estravanquear».

Pág. 164, penúltima do Capítulo XV: «Meninas bispetas» (Serão meninas ricas e muito mimadas?).

Pág. 164, idem: «Cal´te siquer!»

Ao todo são quase três dezenas de dúvidas que irei enviando aos poucos conforme as instruções que tiveram a amabilidade de me informar.

Meus agradecimentos desde já.

Resposta:

As dúvidas que o consulente sente em relação ao significado das cinco expressões e/ou frases que nos apresenta devem-se, sobretudo, ao facto de tais expressões representarem actos de fala dos Açores (e de determinada ilha), do domínio da oralidade e de um determinado grupo social. Tratando-se quase de um código linguístico diverso do continental, não se torna fácil penetrar no verdadeiro sentido, principalmente, das expressões populares. Mas haveria outro modo de se recriar o universo das ilhas dos Açores — a verosimilhança — se não se reproduzisse a singularidade do seu falar?

Não é por acaso que se diz que Mau Tempo no Canal é um romance da açorianidade, onde o regionalismo e o arcaísmo dos falantes açorianos se cruzam, o que dificulta a sua descodificação, pois «o regionalismo nemesiano é regionalismo vivo, recolhido dos actos de fala da gente dos Açores» (José Martins Garcia, Vitorino Nemésio, a Obra e o Homem, Lisboa, Arcádia, 1978, p. 133). Num estudo sobre a obra de Vitorino Nemésio, José Martins Garcia afirma, também, que «Nemésio recuperou um mundo. Dos nomes das coisas aos nomes próprios, da tradição mítica ao vocabulário inglês deturpado em boca de marinheiro açoriano» em que se torna evidente a «tentação de reproduzir em páginas de ficção as peculiaridades fonéticas da fala» (idem).

Perante esta especificidade, poder-se-ia esperar que houvesse outros estudos mais aprofundados sobre a linguagem da obra de Nemésio — talvez um dicionário — em que constassem todas as expressões da açorianidade presentes nos seus textos e, obviamente, a explicação do seu significado. Mas a realidade é que ainda não há notícia de nenhuma obra do género. Resta-nos, portanto, analisar cada expressão no contexto em que está inserida, o que acaba por ser a realidade da leitura/análise literária.

Importa salienta...

Pergunta:

Antes de mais, felicito-os pelo excelente trabalho que fazem em prol da língua portuguesa.

De forma geral, aprendemos na escola que rima rica é aquela em que o autor utiliza palavras de diferentes categorias; rima pobre, aquela em que são usadas palavras da mesma categoria gramatical. Porém, recentemente, tenho visto outras designações tais como «rima rica é a que requer igualdade de sons vocálicos e consonânticos a partir da última vogal tónica». Outros autores rejeitam por completo rica e pobre, devido à conotação negativa que a última pode ter.

Resumindo:

1. Existem as denominações de rima rica e rima pobre?

2. Se sim, como se distinguem?

3. Se não, como classificar os versos que terminam em bonita (adj.)/saltita (v.), vão (v.)/são (v.), feliz (adj.)/infeliz (adj.), ordem (n)/sacodem (v.)?

Muito obrigada pela atenção recebida.

Resposta:

Em primeiro lugar, aconselha-se que veja as respostas já existentes sobre rima rica e rima pobre e, também, sobre rima perfeita.

Respeitando a ordem das questões apresentadas,

1. Rima rica e rima pobre são designações que fazem parte da terminologia específica usada para classificar dois dos casos particulares da área da rima, que, por sua vez, pertence ao domínio da versificação. Tratando-se de uma área que representa a correspondência, a «identidade ou semelhança de sons em lugares determinados dos versos» (Celso Cunha e Lindley Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, 17.ª ed., Lisboa, Sá da Costa, 2002, p. 691) —, correspondência essa que emerge de forma diversa, a rima surge classificada com várias designações de valor dicotómico, tais como: consonância, rima soante ou consoante (quando a correspondência dos sons é completa) e assonância, rima toante ou assonante (quando há conformidade apenas da vogal tónica); rimas masculinas (rimas agudas) e rimas femininas (graves); rima toante perfeita (coincidência de sons e não de letras) e rima imperfeita (quando não há identidade absoluta entre os sons dispostos em rima, quer soante, quer toante); rima pobre, rima rica e, também, rima rara ou preciosa (as excepcionais, difíceis de encontrar, em que, às vezes, «o poeta procura a raridade não só no campo fonético, mas também no morfológico», idem, p. 695).

«Seja o próximo testemunho Actimel!» – vê-se, e lê-se, em painéis publicitários pelas ruas de Lisboa.

Este discurso apelativo que nos convida a participar na publicidade a um produto – o Actimel – chama, de facto, a nossa atenção! A mim, provocou-me, de imediato, uma sensação de estranheza e de natural desconfiança. Ser um testemunho? Como é que alguém se pode tornar num depoimento? Será que não confundiram este termo com o outro que, aparentemente, só difere no género?