Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Qual é a origem do topónimo Sernadelo? Não é mais correto escrever "Cernadelo"?

Resposta:

Não é clara a origem de Sernadelo, topónimo do concelho da Mealhada (sul de Aveiro), mas os elementos que constituem este topónimo são latinos.

Perfilam-se duas hipóteses, ambas com origem em palavras que se usavam na Alta Idade Média, mesmo antes do aparecimento do reino de Portugal:

I. A origem em serna, forma antiga de seara1, palavras que evoluíram do latim peninsular SENARA;

II. Contudo, a marca de género masculino -o, exibida pelo sufixo diminutivo -elo (do latim -ELLU), deixa supor que é derivado de uma expressão em latim vulgar hispânico como «(agru) cernadu», ou seja, «campo (agríciola) fechado»2, pelo que Sernadelo – que, nesta perspetiva, deveria escrever-se "Cernadelo", não fora a grafia com s- inicial ter-se imposto no uso – vem a significar na origem «pequeno campo fechado».

De uma maneira ou de outra, Sernadelo evoca, como outros casos existentes mais a norte, em Portugal, o universo agrícola da Idade Média.

 

1 Outra variante é senra, que também ocorre na toponímia de Portugal e é frequente na Galiza (consultar o visualizador CIGeoE-SIG do Centro de Informação Geoespacial do Exército). Sobre a hipótese de

Pergunta:

Saúdo-vos pelo serviço público, da mais elevada importância, que fazem.

O que dizem os dicionários de etimologia de referência acerca da origem da palavra alojamento?

Bem hajam!

Resposta:

Para o estudo da etimologia de alojamento convém ter uma perspetiva românica, de conjunto, porque é termo que encerra um empréstimo vindo do francês posteriormente adaptado pelas línguas românicas ibéricas.

Assim, é consensual que alojamento, palavra documentada desde o século XV, seja um derivado de alojar, verbo atestado em português, pelo menos desde o século XIV, segundo o Dicionário Houaiss.

O verbo alojar aparece nas línguas iberrromances ocidentais – galego-português e castelhano – talvez como derivado de loja, vocábulo que surge na Península Ibérica por via do catalão llotja, por sua vez, adaptação do francês loge, do baixo-frâncico *laubja (forma hipotética), que significaria «sala». Sobre o radical de loja (e da sua variante quatrocentista lógea), que é loj-, observa-se ainda o seguinte o Dicionário Houaiss:

«[...] do baixo-frâncico antigo *laubja, representado no alto-alemão antigo louba e no médio alto-alemão loube 'vestíbulo, galeria'; a base já se representa no latim medieval laubia, lobia e lobium; do francês o inglês lodge (1225-1290), o italiano loggia (s. XIII), o catalão llotja e o catalão dialetal llonja (do s. XIV), donde o castelhano lonja (1490); o inglês lobby (1553) e loge (como galicismo teatral, por 1749), [sendo] lobby aquele que se universaliza no s. XX; a cognação portuguesa inclui, além dos citados loja, lógea e lobby/lobe, os seguintes derivados: alojação, ...

Pergunta:

Pode dizer-se e escrever-se "formações" com o sentido de mais do que uma ação de formação, ou seja, em vez de «ações de formação»? Eu penso que não, mas gostaria de ter uma opinião mais fundamentada.

Obrigado

Resposta:

Trata-se de uma questão que convoca as escolhas que podemos fazer em função da informalidade ou formalidade da comunicação.

Informalmente, diz-se e é aceitável empregar o nome formação como simplificação de «ação de formação».

Formalmente, a expressão rigorosa e correta é «ação de formação».

Por outras palavras, num documento oficial ou num texto de divulgação, é «ação de formação» o termo que se deve empregar. Note-se, porém, que se usa também «ter formação» e «horas de formação», o que legitima o emprego «formação» e «formações», pelo menos, na comunicação corrente.

Pergunta:

Sou minhoto. Acontece que, normalmente, no registo oral, pronuncio não como "num".

Por vezes, dou comigo a dizer: "Num sei", "Num vi", "Num me disseram nada", entre outros casos.

Gostaria de saber mais sobre esta diferença entre as duas maneiras de dizer. No entanto, não encontrei "num" no dicionário nem nenhum artigo na Internet que tocasse, precisamente, o que vos descrevo.

Está registada? É aceitável ou "mau português"? Foi já abordada por algum entendido na matéria? Há outras variações noutras zonas do país?

Aguardo, se possível, uma resposta complexa e pormenorizada que satisfaça esta curiosidade.

Obrigado.

Resposta:

A forma "num" (ou até "nu", que está documentada na região de Aveiro1) não se aceita na escrita corrente e formal, mas representa a pronúncia de não nas regiões a norte do Mondego e da serra da Estrela. Há descrições que a registam, tal como registam igualmente as formas "nã" e "na", que também não se escrevem e que ocorrem geralmente a sul do Mondego e do sistema da serra da Estrela.

Estas formas "num"/"nu" (tal como "nã"/"na") aparecem antes de verbos: «num sei», «nã sei». É uso descrito por Leite de Vasconcelos (1958-1941) há mais de 90 anos2:

«Ao advérbio "não", isto é, a nom da língua arcaica, corresponde: nóũ (em pausa), num, ou nu (em próclise: por exemplo; nũ sei) reduzido a nu' antes de nasal [...], e às vezes até antes de outra consoante (nu' sóu) [...].

Quando se trata de responder negativamente a uma pergunta, a forma mais generalizada é "não" (ou "nõum", sobretudo no Entre Douro e Minho):

(1) P: O teu pai já chegou? R: Não.

 

1 Consultar Palavras co Bento No Leba, obra de Domingos Freire Cardoso, sobre o falar de Ílhavo, no distrito de Aveiro (ver apresentação na Montra de Livros). Note-se que, no título se escreve "no", em lugar de "nu".

2 Leite Vasconcelos, Opúsculos. Dialetologia, 1928, p. 300. A forma num também ocorre nos dialetos brasileiros: no

Pergunta:

Dicionário Priberam define antecipar como «pensar com antecipação que algo vai acontecer. = ANTEVER, PREVER». E este significado já existe há muitos anos.

Vamos contrariar o dicionário?

Resposta:

É verdade que o Dicionário Priberam, tal como o dicionário da Infopédia, regista antecipar com o significado de «antever, prever», além de outras aceções.

Note-se, contudo, que o uso de antecipar como sinónimo de prever, não fazia parte da definição do verbo nos dicionários de referência mais antigos. Por exemplo, consultando o artigo original de antecipar no Dicionário Aulete, publicado em 1881, verifica-se que não se deteta tal sinonímia:

«v. tr. || Lazer suceder antes do tempo; receber ou pagar antes do vencimento; gastar antes de receber, contraindo empréstimos ou dívidas. v. pr. || adiantar-se: Antecipando-se na viagem chegou na véspera do dia em que era esperado. || Acontecer antes de tempo: Anteciparam-se este ano as trovoadas. F. lat. Antecipare.» (https://www.aulete.com.br/antecipar)

A aceção «antever, prever» parece, portanto, mais tardia e provavelmente indicativa da interferência do inglês to anticipate. Sobre este significado, há uma resposta do Ciberdúvidas de 2004, na qual o saudoso consultor Peixoto da Fonseca já diz que «qualquer dia tal emprego [de antecipar] deixa de ser corrente para passar a correcto, o que sucede com muitos neologismos» (manteve-se a ortografia original).

Passadas praticamente duas décadas, os dicionários mais atualizados já consignam a "nova" aceção – mesmo o dicionário da Academia das Ciências de Lisboa, de 2001, já a regista –, sem nenhum tipo de nota de uso que sugira reprovação.

Claro está que os mais ciosos da vernacularid...