Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

A palavra correta a se utilizar é "bovinicultura" ou "bovinocultura"?

Obrigado.

Resposta:

Ambas as formas têm registo dicionarístico e estão corretas.

Pode, no entanto, considerar-se que bovinicultura é mais rigorosa que bovinocultura, atendendo a que o elemento bovin- é de origem latina e, em compostos (p. ex. agricultura), estes elementos latinos deveriam ligar-se ao elemento seguinte com a vogal i.

Em todo o caso, uma consulta Google sugere que se usa mais bovinocultura do que bovinicultura, pelo que bovinocultura é forma aceitável.

Pergunta:

Uma pergunta genérica clássica, mas para a qual não sei uma resposta ao caso concreto: «cedo de mais» ou «cedo demais»? Inclino-me para o segundo caso, por «demais» poder estar a intensificar «cedo», mas não tenho a certeza.

Resposta:

No caso, a forma mais adequada é demais, no sentido de «demasiado»: «cedo demais» – cf. «demasiado/excessivamente cedo».

Poderia escrever-se «de mais», e de facto era esta a forma prevista pelas Bases Analíticas do Acordo de 1945 (Base XXVIII) e por Rebelo Gonçalves (RG), no seu Tratado de Ortografia da Língua Portuguesa (1948, p. 248).

Contudo, a maneira como se define «de mais» – «locução que se contrapõe a "de menos"» – sempre suscitou reservas, ao ponto de Botelho de Amaral (Grande Dicionário de Dificuldades e Subtilezas do Idioma Português, 1958) lembrar que Gonçalves Viana (Vocabulário Ortográfico) tinha fixado apenas demais para os dois casos e que outros o seguiram, «mesmo no caso de ["de mais"] equivaler a "excessivamente"».

Observe-se que o critério definido pelo Acordo de 1945 e pelo Tratado de RG (que se mantém no Acordo Ortográfico de 1990, Base XV, ponto 6) encontra alguma dificuldade na aplicação ao caso de cedo. Na verdade, se se escreve «cedo de mais», teria de se pensar que nesta associação de palavras a forma «de mais» se contrapõe a «de menos», numa hipotética forma «cedo de menos», que se afigura estranha....

Pergunta:

Como se deve escrever o nome da constelação? "Orion" ou "Orionte"?

Resposta:

Apesar de, em Os Lusíadas, se ler duas vezes1 Orionte, a forma considerada mais correta é Oríon, a par de Orião, também aceitável (cf. Rebelo Gonçalves, Vocabulário da Língua Portuguesa, 1966 e, ao lado, Perguntas Relacionadas).

Oríon é o nome de uma «constelação do hemisfério meridional que está situado no equador, próxima à do Touro, e uma das mais brilhantes do firmamento» (dicionário de Caldas Aulete, na versão eletrónica).

 

1 Ocorre no canto VI, estância 85, no verso 6: «De quem foge o ensífero Orionte» (ensífero = «armado de espada»). Também figura no canto X, estância 88, verso 6: «E do Orionte o gesto turbulento». Acreditava-se que Oríon anunciava tempestades (cf. Os Lusíadas de Luís de Camões /prefácio de Álvaro Júlio da Costa Pimpão; apresentação de Aníbal Pinto de Castro - 4. a ed. - Lisboa: Ministério dos Negócios Estrangeiros. Instituto Camões, 2000, p. 297).

Pergunta:

Escreve-se «um não-sei-quê». Também se deveria escrever «o não-sei-quantos», com hífenes?

Obrigado.

Resposta:

Embora não haja regra clara sobre estes casos, há vários exemplos – não-sei-quê, não-te-rales (cf. dicionário da Infopédia) –, que legitimam a hifenização de não-sei-quantos como nome.

Usa-se informalmente não-sei-quantos como nome – p. ex. «o/a não-sei-quantos» –, quando se pretende referir uma pessoa cujo nome se desconhece ou não se recorda.

Pergunta:

O melhor dicionário português (Houaiss) data a palavra lusitano de 1572. A primeira utilização registada dessa palavra seria então no verso «Que da ocidental praia lusitana» na obra de Luís Vaz de Camões, publicada em 1572. Esta datação parece-me, no entanto, inverosímil; e a palavra é certamente muito mais antiga que 1572.

Em 1587, na segunda edição das Chronicles of England, Scotland, and Ireland de Raphael Holinshed surgem o adjetivo Lusitan («the Lusitan ships») e o substantivo Lusitan («to recouer so much of the Lusitans»). [...] A segunda edição das Chronicles não surge muito depois dos Lusíadas, e é improvável que uma palavra erudita criada em 1572 em Portugal surgisse como adjetivo e substantivo numa publicação inglesa pouco tempo depois.[..]

Eu partia do princípio que a palavra lusitano tinha surgido na língua portuguesa ainda que não pelo pena de Luís Vaz, e que daí migrara para outras línguas incluindo Lusitan e depois Lusitanian em inglês, lusitains e depois lusitanien em francês, e noutras línguas.

Mas será necessariamente assim? Será possível que a dita palavra tenha surgido de forma erudita noutra língua europeia e migrado para a língua portuguesa? Que opinam?

Obrigado-

Resposta:

Há de facto razões para duvidar que a atestação mais antiga de lusitano provenha de Os Lusíadas, pois, consultando a secção histórica do Corpus do Português, detetam-se ocorrências em obras publicadas antes de 1572, ano de publicação do poema de Camões:

(1) «E mais eu tenho cuidado/ deste reino lusitano [...]» (Gil Vicente, Cortes de Júpiter, 1521, muito embora a Compilaçam de Todalas Obras date de 1562)

(2) «E daqui procedeu um embaixador deste reino de Abassia, que veo a este Portugal, dizer ao nosso lusitano Damião de Góis, quando escreveu da religião e costumes desta gente, que em sua linguagem Bebule e Encoe queria dizer Precioso Joane [...].» (João de Barros, Década Terceira, Livro Quarto, 1563)

Contudo, atendendo aos estudos de Fernando Venâncio sobre o contributo lexical castelhano para o português, é até provável que a palavra já circulasse antes do século XVI nas línguas hispânicas, ou seja, no castelhano, no sistema galego-português e até no aragonês. Com efeito, lusitano encontra-se abonado, por exemplo, num texto aragonês de finais do século XV, como evidencia uma consulta do Corpus del Diccionario histórico de la lengua española (versão 3.1; ):

(3) «otros hauedes subiugado & transportado los pueblos lusitanos &Jllurgitanos conquistados iustamentpor los [...]» (Juan Fernández de Heredia,