Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

A palavra anestesia é derivada, ou composta?

Resposta:

A palavra anestesia é derivada, sendo assim analisada (cf. anestesia, no Dicionário Houaiss):

an-, "não, sem" + estesia, "faculdade de perceção pelos sentidos"

Na Gramática Derivacional do Português (Coimbra, 2013, p. 357), de G. Rio-Torto et al., menciona-se anestesia como palavra resultante da derivação com o prefixo an-:

«O prefixo a-, com origem no grego a(n)-, veicula uma informação de ‘privação de x’ (acaule, amoral) que, no caso de alguns adjetivos, se manifesta sob a forma de ‘não x’ (acatólico, agramatical, anormal, atípico). Como estes exemplos comprovam, o prefixo a- acopla-se a adjetivos de relação, com valor tipicamente classificatório, que em regra são incompatíveis com in-, pelo menos na sua leitura literal. A inexistência de verbos prefixados em a(n)- deve-se ao facto de o sentido de ‘privação de x’ ser semanticamente não compatível com um evento denotado pelo verbo. Daí a agramaticalidade da combinatória. Muitos dos produtos em que ocorre são termos eruditos e/ou técnicos (anaeróbico, anencefalia, anovulatório) e grecismos (analfabeto, anarquia, anemia, anestesia, afónico, anónimo, ateu, átono). Os poucos casos em que o prefixo, com valor privativo, se combina com nomes (assimetria, assintonia, agramaticalidade) são também de feição erudita.»

Pergunta:

Qual a origem do nome da "velha" e, supostamente, fortificante sopa de cavalo cansado, feita com pão e vinho?

Obrigado!

Resposta:

Há quem queira atribuir a denominação «sopas de cavalo cansado» à prática antiga de dar o alimento assim chamado aos animais de tiro ou carga para recuperarem energia:

«Na época das carruagens, nas aldeias de Portugal, quando nas pousadas não havia cavalos descansados ​​para substituir e continuar a viagem, davam estas sopas com vinho e açúcar para os animais, que os deixavam refrescados e cheios de energia» (blogue Portugaldantigamente, consultado em 29/01/2016).

Não encontro confirmação desta tese noutras fontes portuguesas, mas numa página espanhola da Internet (Fran Chef, el cocinero), na qual se comenta a origem das também galegas sopas de cabalo cansado, considera-se que a denominação alude à maneira «[...] como se revitalizaba a los caballos, mulas y asnos que se utilizaban como fuerzas motrices a la hora de mover arados, trilladoras y otros aperos de labranza que necesitaban tracción animal» (= «... como se revitalizavam os cavalos, mulas e asnos que se utilizavam como forças motrizes para puxar arados, debulhadoras e outras alfaias agrícolas que necessitavam de tração animal»). Devo referir, porém, que não pude achar obras de referência que corroborassem esta explicação.

Entretanto, assinalo que, em português, além de «sopas de cavalo cansado», se regista ainda a expressão «sopas de burro cansado» (ver sopas em A. M. Pires Cabral, Língua Charra. Reg...

Pergunta:

É incorreto escrever «fazer que» ou «faz que»? Só pode usar-se «fazer com que» ou «faz com que»? Qual é a diferença ou em que contexto se justifica o uso de uma e/ou de outra forma?

Resposta:

Não é incorreto empregar «fazer que (alguma coisa aconteça)» – pelo contrário. Contudo, não se diga que é incorreta a construção «fazer com que (alguma coisa aconteça)».

Certos puristas (por exemplo, Cândido de Figueiredo) consideravam que «fazer que» era melhor do que «fazer com que», quando se tratava de marcar um sentido causativo («ele fez que o computador se avariasse» vs. «ele fez com que o computador se avariasse»). No entanto, já Vasco Botelho de Amaral (Grande Dicionário de Subtilezas e Dificuldades do Idioma Português, 1958) defendia que «fazer com que» e «fazer que» eram ambas expressões corretas, estando a primeira documentada, pelo menos, desde os princípios do século XVI, em textos literários, incluindo os dos autores clássicos do século XIX.

Pergunta:

Na frase «Não tenho nada que te dar nos teus anos», como se classifica a oração «que te dar nos teus anos»?

Grata pela vossa ajuda.

Resposta:

Trata-se de uma oração subordinada adjetiva relativa de infinitivo.

É uma construção que não costuma ser estudada fora do âmbito universitário, embora seja bastante usada tanto na oralidade como na escrita.

A Gramática da Língua Portuguesa (Editorial Caminho, 2003, pp. 683-685), de Maria Helena Mira Mateus et al., refere este tipo de construção relativa, salientando que:

– pode ter por antecedente certos pronomes indefinidos que podem estar omissos – por exemplo, alguém, algo, nada, ninguém – como se ilustra em 1 e 2:

1 – Eles não têm nada que comer.

2 – Eles não têm que comer.

– é limitado o número de verbos que selecionam este tipo de relativas: ter, arranjar, procurar (também se inclui o verbo existencial haver – cf. Gramática do Português, Fundação Calouste Gulbenkian, 2013, p. 2084);

– os pronomes relativos que introduzem estas construções relativas são que, quem, onde;

– estas orações só admitem o infinitivo não flexionado (não é possível *«eles não têm nada que vestirem» – a forma correta é «eles não têm nada que vestir»);

– são equivalentes a outras construções&#x...

Pergunta:

Gostaria de compreender o que é a harmonização vocálica e como funciona.

Obrigado pela atenção.

Resposta:

O fenómeno de harmonização vocálica (ou harmonia vocálica) é o «modo como a articulação de uma vogal é influenciada pelas propriedades de outra(s) vogal(ais) na mesma palavra ou no mesmo grupo de palavras» (Dicionário de Termos Linguísticos).

O Dicionário Houaiss é bastante concreto:

«Tipo de assimilação vocálica, em que as vogais de uma palavra se tornam foneticamente semelhantes a outra vogal da mesma palavra (geralmente a tônica, mas não obrigatoriamente), com a troca de alguns dos seus traços; harmonização vocálica (p. ex., a pronúncia de certos verbos, como [de'ver] dever, mas [di'via] devia, por assimilação ao [i] da desinência).»

Uma obra em inglês – Philip Carr, A Glossary of Phonology (2008), «vowel harmony» – dá um exemplo de harmonia vocálica, recorrendo ao quicuio, língua da família banta falada pelos quicuios do Quénia. Nesta língua, existe um sufixo que tem a forma [ɪr] (a vogal alta [ɪ] é próxima de [i]), ou a forma [er] ([e] é uma vogal menos alta); a seleção de uma destas variantes depende da altura da primeira vogal da raiz – exemplo: [rut-ɪr-a], «trabalhar para», porque [u] é uma vogal alta como [ɪ], mas [ror-er-a], «olhar para», porque [o] é uma vogal menos alta.

Nota: O consultor Luciano Eduardo de Oliveir...