Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

«(...) apesar das sucessivas declarações apaziguadoras de que a maioria das pessoas que vivem em bairros como Molenbeek em Bruxelas são gente pacífica – e são – e que condena com toda a veemência os actos de terrorismo (...)»

[José Pacheco Pereira, "Público", 26/03]

 

«... a maioria das pessoas vivem...», ou é «... a maioria das pessoas vive...»?

Obrigado.

Resposta:

Com a expressão «a maioria de», recomenda-se a concordância verbal no singular, com a palavra maioria, adotando um critério estritamente sintático. Mas, como muitas vezes a construção «a maioria de...» tem por complemento uma expressão nominal no plural, aceita-se que o verbo ocorra também no plural concordando com essa expressão nominal. Por outras palavras, não se pode dizer que estejam incorretas as sequências «a maioria das pessoas vivem» ou «a maioria das pessoas são».

Note-se, porém, que a concordância da ocorrência do verbo viver na frase em causa se verifica numa oração relativa e, portanto, o seu sujeito é o pronome relativo que, e não «a maioria das pessoas» nem «as pessoas»:

1 – «... a maioria das pessoas que vivem em bairros como Molenbeek...»

Em 1, a expressão «a  maioria de...» especifica uma expressão nominal – «as pessoas que vivem em bairros como Molenbeek...» –, modificada pela oração subordinada adjetiva relativa «que vivem em bairros como Molenbeek...». O antecedente de que é, portanto, «as pessoas», e não «a maioria d(as pessoas)», e, como tal, o verbo («vivem») pluraliza de acordo com o pronome que, cujo valor de plural se deve justamente ao seu antecedente, «as pessoas», no plural.

Pergunta:

Escreve-se «abnegação ao trabalho», ou «abnegação do trabalho»?

O contexto é «... a imagem do ser submetido às relações do mercado, cujo sucesso depende apenas da abnegação do trabalho e do génio pessoal...».

Obrigada.

Resposta:

O substantivo abnegação, com o significado de «renúncia», seleciona a preposição de para introduzir o seu complemento: «a abnegação do trabalho e do génio pessoal». Esta é a preposição que se associa a abnegação no Dicionário de Regimes de Substantivos e Adjetivos de Francisco Fernandes (Editora Globo, 1995); exemplos: Mostrava assim a mais completa abnegação das coisas temporais» (Aulete, idem); «Abnegação de si mesmo» (Vieira, Sermões, idem).

Note-se que o verbo donde este substantivo deriva, abnegar, pode ser usado quer como transitivo direto quer como transitivo indireto – e, neste último caso, é de a preposição que rege o complemento: «transitivo direto e pronominal 1 renunciar a (os próprios interesses e/ou as tendências naturais) ou sacrificar-se em benefício de outrem ou em nome de uma ideia, de uma causa; Ex.: "abnegou a vida de prazeres para lutar pelos grandes ideais"; "aqueles que se abnegarem de si terão altas recompensas morais";  transitivo direto 2 não admitir, não aceitar; lançar fora, desprezar; Ex.: abnegava a injustiça e a impiedade» (Dicionário Houaiss, 2009; sublinhado meu).

Pergunta:

Poder-se-á dizer «discernir se», como no exemplo «devemos discernir se o conteúdo é "este" ou "aquele"»?

Resposta:

O verbo discernir pode ser seguido de uma oração introduzida por que ou se:

1 – «Pode discernir [...] que os animais apresentam diferentes graus de complexidade estrutural» (Dicionário de Usos do Português do Brasil, Editora Ática, 2002).

2 – «Ora, na galeria dos Jerónimos, as exposições de números únicos abundam, e perante elas, a seis meses apenas de pauta, o espectador não pode discernir se tais objectos são apenas caprichos de curioso querendo mostrar que cá também se faz, se mais do que isso, tentamens receosos de indústrias criadas sob propósito de pouco a pouco se irem desenvolvendo em escala comercial» (Fialho de Almeida, Os Gatos in Corpus do Português).

Pergunta:

Existe o verbo "estremingar" em português?

Obrigada.

Resposta:

Não encontrei registo de "estremingar" em dicionários portugueses. No entanto, numa consulta de páginas da Internet, observo que no castelhano regional existe um verbo com configuração idêntica, estremingar – atestado no falar de Morgovejo (no nordeste da província de Leão) e em Villacorta (na província de Segóvia). A mesma forma consta também de um dicionário de leonês – um "Palabreru Lleonés", no portal Esllabón Lleonesista. As referidas fontes indicam ainda que se usa a locução «dar estremingones».

Tanto estremingar como «dar estremingones» significa «abanar alguém, sacudir alguma coisa», mas o dicionário da Real Academia Espanhola não o regista, o que sugere que se trata de um verbo pouco ou nada frequente na norma-padrão do espanhol. Seja como for, não posso confirmar que este aparente leonesismo/castelhanismo exista dialetalmente em português – já que na norma-padrão não se atesta. Note-se que, em galego, língua muito próxima do português e que costuma dar pistas sobre os regionalismos da nossa língua, não se atesta o uso de estremingar, nem sequer de uma expressão hipotética como «dar estremingóns». A resposta fica, portanto, aberta à colaboração dos consulentes que queiram facultar pistas sobre a eventual ocorrência de estremingar nos falares regionais portugueses.

 

Nota (9/04/2016): Agradeço à consulente Isabel Maia a achega que nos enviou: «Nasci e cresci...

Pergunta:

A expressão «inspirar às golfadas» existe? Os dicionários definem «golfada» como um jorro de vómito ou de líquido, mas julgo ter ouvido a expressão «inspirar às golfadas» no sentido de respirar sofregamente, em aflição. A expressão é correcta? E, se não é, há alguma que seja do nosso uso?

Muito obrigado.

Resposta:

A expressão em apreço está correta, porque é possível associar golfada não só a matéria líquida mas também ao ar que se respira.

Relaciona-se geralmente golfada, que significa «jorro, jato, vómito», com a ideia de líquido, e por isso ocorre a palavra frequentemente com outras como sangue, por exemplo, na expressão «golfada de sangue» ou em «sangue às golfadas» (ver dicionário da Academia das Ciências).

Contudo, a expressão «às golfadas» pode também ser associada à noção de ar, o que permite dizer que «se respira (ar) às golfadas», que «se inspira (ar) às golfadas», além de existir «ar às golfadas» ou de haver «golfadas de ar». Encontram-se exemplos deste uso na literatura:

1 – «Mas, neste naufrágio que agora contemplo na minha imaginação, vejo alguns homens varridos pelas ondas, atirados pela borda fora, amaldiçoando o mar antes de morrerem com os pulmões cheios de água. Avidamente inspiram umas últimas golfadas do ar que agitadamente os mata. O barco tem o leme partido, as velas esfarrapadas, um mastro derrubado» (Maria Isabel Barreno, O Senhor das Ilhas, 1994, in Corpus do Português).

2 – «Leu toda a noite, sentado aos pés da cama, respirando a largas golfadas, com a delícia de quem sai de um cárcere, a atmosfera que o envolvia, feita das emanações de Ideal, exaladas daqueles volumes românticos» (Eça de Queirós, A Capital, idem).

Também no dicionário da Academia das Ciências de Lisboa há atestação desse uso:

3 – «um projector enorme acendendo-se e apagando-se cont...