Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Qual é o termo mais correcto em língua portuguesa para designar uma pousada/albergaria com características próprias vocacionadas para um público jovem, com dormitórios colectivos e geralmente de custo inferior a um hotel ou pensão? Geralmente deparo-me com a variante anglófona hostel, mas já encontrei por diversas vezes em literatura especializada em viagens a palavra "hostal". O dicionário electrónico da Porto Editora apenas admite para este significado a palavra hostel, definindo-o como um «estabelecimento que fornece serviços de alojamento, em quartos privados ou coletivos (dormitórios) a preços inferiores aos de um hotel; albergue». Hostal é referido apenas como sinónimo de "estau", definido como «antiquado: espécie de hospedaria onde os reis de Portugal alojavam a corte e os embaixadores, nas cidades onde se demoravam». A palavra hostel existe já então de uma forma efectiva na língua portuguesa e é preferível a hostal, como concluo da consulta deste dicionário?

Resposta:

O termo inglês hostel está aportuguesado como hostel, e é até aceite na terminologia administrativa. No entanto, trata-se de uma palavra que não está totalmente estabilizada no português (pelo menos, em Portugal), podendo ser substituída por uma solução mais vernácula (albergue ou hospedagem, por exemplo).

Há anos, no Ciberdúvidas, uma consulta abordou a palavra hostel, considerando que o vocábulo não estava ainda integrado no português. Hoje, ela é efetivamente usada – existe realmente no uso – como denominação de um tipo de equipamento e serviço hoteleiros, no contexto da explosão turística nas cidades portuguesas. Como bem diz o consulente, o dicionário da Porto Editora já propõe o pleno aportuguesamento fonético e ortográfico de hostel, que se adapta sem grande dificuldade como hostel (embora seja possível que a pronúncia completamente lusitana do termo – com s chiado e e aberto – desencadeie reações adversas entre os que já se afeiçoaram à elocução anglo-saxónica). No entanto, é verdade que a proposta da Porto Editora não encontra unanimidade, porque o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa regista hostel como estrangeirismo, ao assinalá-lo em itálico e dando-lhe como sinónimo albergue, substituto bem mais vernáculo. Também se observa que os termos usados nos 

Pergunta:

Tenho visto, com relativa frequência nas mídias (FB, cartuns). a grafia "afinzona" como em «não posso dar muita bandeira de que estou afinzona dele». É assim mesmo que deve ser grafada esta palavra? Fico na dúvida porque "afinzona", ao certo, deriva da locução  «a fim de».

Poderíamos falar neste caso de formação por parassíntese?

Resposta:

Trata-se de um uso fora da norma-padrão, no qual parte da locução prepositiva «a fim de» passa a ter estatuto adjetival como «"afim" (de)», no sentido de «estar com interesse amoroso em, enamorado» (cf. «estar a fim de» como subentrada de fim, no Dicionário Houaiss). Com base na segmentação incorreta da palavra ("afim"), forma-se o aumentativo desta, com valor superlativo: «"afim" (de)» > «"afinzão" de», «"afinzona" de». Parece tratar-se de uma criação pontual no contexto do português popular do Brasil, que as regras gerais de formação de sufixação permitem, mas que não tem aceitação nem nos registos cultos e formais nem atestação dicionarística. Veremos se vai ficar ou não na língua.

Este caso não se enquadra na derivação parassintética, porque não envolve uma base a que se associem simultaneamente um prefixo e um sufixo (como acontece com anoitecer < a + noit- + -ecer). Como se referiu, o processo de formação de "afinzão" e "afinzona" é apenas o da derivação sufixal para produzir um aumentativo, pressupondo como base o resultado da reanálise de uma locução.

Acrescente-se, em jeito de esclarecimento para o público não brasileiro, que «dar bandeira» significa «deixar escapar algo que não podia ou não devia ser divulgado; expor-se, fazer uma inconfidência, geralmente por lapso ou ingenuidade» (Dicionário Houaiss, que inclui a seguinte abonação: «perdeu a fortuna mas não dá bandeira»). Sendo assim, a frase «não posso dar muita bandeira de que estou afinzona dele» será, num registo mais neutro e corrente, o mesmo que «não posso esconder que tenho grande atração por ele».

Pergunta:

Será admissível usar o verbo "pseudonomizar" (o contexto é o do tratamento dos dados pessoais dos registos criminais)? Alguma alternativa mais vernácula?

Muito obrigado!

Resposta:

Uma vez que se encontra dicionarizado anonimizar, «tornar anónimo», também é possível formar pseudonimizar, «tornar pseudónimo» (ou seja, «fazer com que fique com nome fictício»; neste caso considera-se o uso adjetival de pseudónimo, que é legítimo). É um neologismo e, não sendo uma palavra do velho fundo lexical transmitido por via popular, porque se forma com elementos cultos de origem grega – o prefixo pseudo-, «falso»; o radical onom-, que evoca a noção de «nome»; o sufixo -izar, hoje muito produtivo –, também não se trata de um termo não português; com efeito, tais elementos estão bem enraizados na língua, sem que sobre eles recaia reprovação normativa. O pedido feito na consulta, de uma forma mais vernácula, tem provavelmente que ver com o facto de estes elementos de derivação e composição terem feição internacional, porque outras línguas também os adotaram e adaptaram, configurando este conjunto de morfemas como que um reservatório interlinguístico para as terminologias e os neologismos. 

De qualquer modo, em português, não encontro nem me ocorre sinónimo com mais longa tradição e com o mesmo poder de síntese semântica que possa constituir alternativa.

Pergunta:

No texto de abertura do passado dia 8 de Abril, fiquei admirado de ter lido que "ôro" é a pronuncia-padrão da palavra ouro. Confessem-me que é uma mentira atrasada do dia 1 de Abril...!

Resposta:

Quando se fala em pronúncia-padrão, não significa que, com esse termo, se refira uma pronúncia vista como a única correta. Nem se julgue que a grafia é espelho da pronúncia (julgar isso é que poderá ser ser, paradoxalmente, a verdadeira mentira de 1 abril). Vou procurar, portanto, esclarecer um pouco melhor a afirmação feita na Abertura em causa.

Em Portugal e noutros países de língua portuguesa, as palavras escritas que exibem ou são geralmente pronunciadas não com o ditongo [ow], mas, sim, com a vogal [ô] (o chamado o fechado). Numa perspetiva puramente descritiva (não normativa), é isto que se observa junto de muitos falantes, se não mesmo entre a maioria dos falantes do português do Centro e do Sul de Portugal.

Nada do que se acaba de referir entra em choque com conservação do ditongo pelos falantes do terço norte de Portugal; mas a verdade é que a pronunciação representada nas transcrições fonéticas disponíveis nos dicionários – dê-se o caso do dicionário da Academia das Ciências de Lisboa – indica uma vogal simples, e não um ditongo. Pode argumentar-se que nos dicionários produzidos no Porto se transcreve <ou> como ditongo – [ow] (ver transcrição fonética de ouro no dicionário da Porto Editora, disponível na Infopédia). É isto verdade, mas o símbolo da semivogal [w] figura entre parênteses, indicando-se que esta semivogal é possível e aceitável na articulação, mas não é obrigatória: «ouro [...] [ˈo(w)ru]».

Parece, portanto, que a pronúncia mais comum que corresponde à grafia <ou> é com uma vogal simples – "ô". E, além de ser mais comum, a redução do ditongo a vogal simples é também um traço da pronúncia-padrão correspondente à grafia <ou>. Não se pense...

Pergunta:

Tanto quanto sei, deve escrever-se «ele tem um Ferrari e um picasso». E se, além disso, o ricaço em questão possuir um violino feito por Stradivarius? O correcto será acrescentar «e ainda um Stradivarius» (equivalente a marca), ou «e ainda um stradivarius» (obra)?

[...] [Recordo] uma [...] resposta dada, por Rui Gouveia, no [...] Ciberdúvidas, e que me parece absolutamente lógica: «Há uma figura de retórica chamada metonímia, que consiste, “grosso modo”, em substituir uma palavra (ou um conjunto delas) por outra com a qual tenha qualquer relação por dependência de ideia. É o que acontece, por exemplo, na frase "Quem me dera ter um picasso na parede da sala!", em que "picasso" está por "quadro da autoria do pintor espanhol Pablo Picasso".»

Relativamente ao violino construído por Stradivarius:

Julgo que deve escrever-se «um Bösendorfer», à semelhança de «um Ferrari», porque esta em causa uma marca (de pianos). E, por extensão, também «um Stradivarius», embora, neste caso, não se trate exactamente de uma marca. Mas isto é apenas um «palpite», motivo pelo qual vos coloquei a minha pergunta.

Mais uma vez, obrigado pela vossa atenção.

Resposta:

É legítima a minúscula inicial de picasso, usado como nome comum em «um picasso», mas legítima também parece a grafia ferrari (em itálico, mantendo a grafia italiana; ferrári, aportuguesando-a), igualmente com minúscula inicial, para referir um carro da marca Ferrari.

Eis as razões:

1. Os acordos ortográficos que têm vigorado em Portugal (tanto o de 1945 como o de 1990) não se referem diretamente aos casos em questão, os quais consistem na reutilização de nomes próprios de pintores e de marcas como nomes comuns. No entanto, o acordo de 1945 (Base XXXIX) observa que «[..] [r]elativamente a[os nomes de raças, povos ou populações, qualquer que seja a sua modalidade, os nomes pertencentes ao calendário, com excepção das designações dos dias da semana, escritas sempre com minúscula, e os nomes de festas públicas tradicionais], [...] é importante distinguir deles as formas que podem corresponder-lhes como nomes comuns e que, como tais, exigem o emprego da minúscula inicial: "muitos americanos", "quaisquer portugueses", "todos os brasileiros"; "fevereiro" (nome de uma ave), "outonos" (cereais que se semeiam no Outono), "primavera" (nome de plantas)». É verdade que parte do que se diz nesta passagem não é mantida pelo acordo ortográfico de 1990 (AO 1990), o qual determina a minúscula inicial para os «nomes pertencentes ao calendário»; no entanto, interessa é realçar que o texto de 1945 estabelece o princípio da minúscula inicial nas fo...