Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Vejo/oiço constantemente o uso da expressão como sinónimo de completamente. Há quem conteste. Há dicionários que apenas indicam «de modo literal», outros indicam também «completamente». Podem ajudar?

Grato pela atenção.

Resposta:

O uso de literalmente como sinónimo de completamente é frequente, é mais antigo do que se pode pensar e até se encontra dicionarizado. No entanto, pode revelar-se discutível, tal como acontece com o seu homólogo anglo-saxão literally, que, do ponto da norma do inglês, tem sido alvo de censura.

Além de significar «de modo literal» e «exatamente», o advérbio literalmente ocorre no sentido de «completamente», uso que já está dicionarizado há algum tempo, conforme se pode confirmar pela consulta do dicionário da Academia das Ciências de Lisboa, publicado em 2001. A 1.ª edição do Dicionário Houaiss (2001) também o acolhe nessa aceção, bem como o dicionário da Porto Editora. Contudo, é verdade que o dicionário Priberam regista literalmente apenas como equivalente a «de modo literal» e «com as mesmas exatas palavras». Também se encontram atestações de literalmente = «completamente» na literatura do século XIX:

1. «O rosto, as mãos e a camisa do Sr. Joãozinho ficaram literalmente tingidas.» (Júlio Dinis, A Morgadinha dos Canaviais in 

Pergunta:

Já existem duas respostas acerca do verbo tratar, mas julgo que nem uma nem a outra respondem a esta questão: devemos escrever «tratarei que te deem uma lição» ou «tratarei de que te deem uma lição»?

Obrigado.

Resposta:

Recomenda-se que a preposição de se conserve antes da conjunção («tratar de alguma coisa»/«tratar de que....»), mas não é erro omitir tal preposição («tratar que...»).

O uso de tratar com orações finitas («tratarei que/de que te deem uma lição») tem certo tom arcaico, o que talvez explique que não esteja esta possibilidade incluída na descrição do verbo nos dicionários de regências consultados*. Contudo, a consulta de conjuntos de textos (ou corpora, como o Corpus do Português) revela que «tratar de» (no sentido de «ocupar-se», «procurar», «fazer com que») há séculos que se emprega quer com preposição quer sem ela antes de oração com o verbo finito:

1. «Conforme-se Vossa Senhoria com o seu original, que é o mesmo Deus, pois sabe que é seu retrato; e trate de que nessa cera vil de suas inclinações terrenas faça aquele selo eterno do amor de Deus uma impressão divina» (António das Chagas, Cartas Espirituais, 1665, in Corpus do Português).

2. «Para evitar de algum modo este descrédito, tratei que os dois primeiros tomos se recolhessem [...]» (Padre António Vieira, Cartas, in Corpus do Português).

Acrescente-se que a consulta do Corpus do Português indica que se tem usado mais «tratar que», sem preposição, do que «tratar de que», mesmo entre escritores cujas obras são tradicionalmente consideradas modelares para a norma-padrão, como é o caso de António Vieira, autor da frase em 2. O verbo tratar junta-se portanto a vários outros que são compatíveis com a omissão da preposição de antes da...

Pergunta:

Ao rever um livro, deparei com duas frases quase seguidas em que se podia ler, na primeira, «era verdade que ela lhe fizera falta» e, na segunda, «mas de quem sentira mais a falta [...]».

Pergunta: devemos escrever «falta» ou «a falta»? A diferença de verbos tem, neste contexto, alguma relevância para a questão, de tal modo que ambas as frases estão corretas? E, se ambas as frases estão corretas mas tal não se deve à mudança verbal, qual é a forma mais correta?

Muito obrigado.

Resposta:

Os dois usos estão corretos, mas correspondem a significados ligeiramente diferentes.

Há que distinguir duas a três construções:

(a) fazer falta

(b) sentir falta/sentir a falta

Em (a), nunca ocorre o artigo definido, funcionando «fazer falta» como uma locução verbal, equivalente globalmente ao verbo faltar. Em (b), a ocorrência ou a ausência do artigo definido têm consequências semânticas mínimas, mas, ainda assim, relevantes:

1. Sinto falta de sol/da (minha) família. [«sinto falta»= falta-me/tenho falta]

2. Sinto a falta de sol/da (minha) família [«sinto a falta» = apercebo-me da ausência de alguma coisa/alguém]

A diferença entre 1 e 2 não é uma questão de grau de correção. É antes uma questão semântica, de opção entre o valor mais vago ou abstrato de 1, em que falta constitui como que um mero modificador de sentir, e o valor mais concreto de 2, dando a falta um referente concreto ou assinalando que em discurso já se mencionou a sensação ou o sentimento de falta. Este último caso ocorrerá quando, por exemplo, numa conversa, já foi dito que em determinado lugar há falta de sol (note-se a ausência de artigo) e se pergunta: «Não sentes a falta de sol?» – ou seja: «não sentes a falta de sol de que já fomos informados?».

Pergunta:

«O ator entrou em palco» ou «O ator entrou no palco»? Pergunto isto porque, em bom rigor, deveria ser «no palco» («em o palco»), mas quase sempre se diz «em palco».

Obrigado, como sempre!

Resposta:

As duas construções são possíveis, mas pode-se distinguir uma pequena diferença, que na prática até pode ser negligenciável:

(a) entrar em palco = começou a atuar/interpretar;

(b) entrar no palco = entrar no espaço de cena.

A falta do artigo definido, como em (a), que está correta, dá normalmente à expressão um caráter mais genérico e, por isso, mais vago.

Note-se que, apesar de palco se aplicar propriamente a uma «espécie de plataforma onde se apresenta publicamente um espectáculo» (s. v. palco, Dicionário da Língua Portuguesa Contemporâneo da Academia das Ciências de Lisboa), a palavra é igualmente empregada por metonímia ao espaço de representação tomado globalmente (cf. idem, ibidem).

Segundo o Dicionário Houaiss, palco vem do italiano palco «estrado, plano» e «tablado para uso variado» (na contemporaneidade é mais usado palcoscenico), vocábulo, por sua vez, originário do longobardo *balk, «viga, trave».

Pergunta:

Gostaria de saber se a expressão «até a esse momento» é errada, devendo-se suprimir o a, ou se a utilização da locução, neste caso seguida pelo demonstrativo, é perfeitamente viável.

Agradeço e saúdo o vosso trabalho.

Resposta:

Recomenda-se «até esse momento», sem a preposição a.

A pergunta tem que ver com o uso de até no português de Portugal, em referência a um limite no espaço ou no tempo. Como se sabe, na referida variedade, emprega-se até com a preposição a – constituindo a locução prepositiva até a – antes de artigo definido (o, a, os, as): «até ao café», «até à véspera». A locução ocorre ainda com o possessivo, quando este é acompanhado do artigo definido, como acontece geralmente: «até à minha casa» («a minha»), «até ao meu aniversário» («o meu»). Antes de outros especificadores (determinantes, como os demonstrativos este ou esse, ou quantificadores, como todo)1, só aparece a preposição até: «até este/esse momento», «até este/esse instante», «até esta/essa data», «até todo o ano de 2017».

Dito isto, convém, no entanto, assinalar que se registam exemplos de até a com o artigo indefinido mesmo na escrita literária ou culta:

1. «No pendor do monte, coberto de carvalhos e de fragas musgosas, brota a fonte nomeada, que já em tempos de El-Rei D. João V curava males de entranhas – e que uma devota senhora de Corinde, D. Rosa Miranda Carneiro, mandou encanar desde o alto até a um tanque de mármore, onde agora corre beneficamente, por uma bica de bronze, sob a imagem e patrocínio de Santa Rosa de Lima» (Eça de Queirós, A Ilustre Casa de Ramires...