Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Não consigo entender a diferença entre referência, referente e denotação.

Peço, por favor, uma explicação com exemplos para ajudar a compreender, visto que já vi as definições e não sei como distinguir esses conceitos.

Resposta:

Por referente, entende-se a entidade extralinguística que é identificada por um nome comum especificado por um artigo definido ou um demonstrativo («a maçã», «esta/essa/aquela maçã»), por um pronome pessoal (eu, tu, ele/ela, etc.) ou por um nome próprio (Raquel, João, Maria, etc.). Por exemplo, num contexto concreto, vejo uma maçã e, num enunciado, digo «esta maçã». Quando digo «eu falo», refiro-me a mim próprio como enunciador. Quando digo «o João canta», refiro-me a uma pessoa que conheço e se chama João. Os referentes tendem, portanto, a variar em função das pessoas que falam e dos contextos em que falam.

Referência pode ser sinónimo de referente, mas também designa a propriedade de as expressões linguísticas identificarem coisas, animais e pessoas do mundo extralinguístico. O facto de alguém, em dado momento, identificar uma maçã como «esta maçã» constitui um fenómeno de referência.

A denotação de uma palavra ou expressão é o seu significado literal e estável (cf. Dicionário Terminológico*). Por exemplo, maçã significa «fruto da macieira, de forma geralmente esférica», ou seja, trata-se da definição da palavra como um conjunto de propriedades abstratas. Por denotação, também se entende a classe de entidades do mundo a que corresponde essa definição da palavra; assim, a denotação de maçã é também o conjunto de todas as entidades que podem ser designadas por este vocábulo. A denotação «não varia de enunciado para enunciado, em função do contexto situacional ou discursivo, do falante ou do lugar ou do tempo em que se produz o enunciado» (Gramática do Português

Pergunta:

No campo da poesia popular, [o que] devo considerar romance?

Resposta:

No âmbito dos estudos da cultura popular, do folclore e da etnografia, romance ou rimance é um termo que designa «[um] poema de versos simples e curtos, de assunto comovedor e próprio para ser cantado» (dicionário da Porto Editora). Também se usa a palavra xácara como sinónimo (cf. rimance na Infopédia).

Pergunta:

No noticiário à volta do chamado fenómeno, também descrito como "jogo", Baleia Azul, tenho lido, e ouvido, o termo ora com artigo, ora não, no feminino ou no masculino, mas também no género neutro. Por exemplo: «Primeira vítima da Baleia Azul em Portugal», «O Baleia Azul é jogado sobretudo na famosa rede social russa VKontakte», «Desafio da Baleia Azul: o jogo que já matou três pessoas», «Baleia Azul faz vítimas entre os adultos», «Fazer um voto de que você é realmente uma Baleia Azul».

Em que ficamos?

Resposta:

São legítimas as oscilações da atribuição de género – ora masculino, ora feminino* – ao jogo em referência, porque elas se explicam pela maneira como se interpreta o nome em questão.

O nome do jogo ocorre como "Baleia Azul", forma que traduz o inglês Blue Whale, por sua vez tradução do russo Cиний кит (em transliteração latina Siniy Kit), literalmente «baleia-azul», que é do género masculino. Como nome comum, baleia-azul (que tem hífen) é do género feminino em português. Convertendo este nome comum em nome próprio, deveria continuar a usar-se hífen e manter-se-ia o género feminino: «a Baleia-Azul é um jogo perigoso». Contudo, tendo em conta o uso como nome próprio, é também possível «o Baleia-Azul», pressupondo «o jogo que se chama Baleia-Azul».

Uma consulta do Google revela o mesmo tipo de oscilação, embora com certa vantagem para o uso de Baleia-Azul no feminino. Contudo, esta conclusão deve ser considerada com bastante prudência, porque baleia-azul já ocorria antes em páginas eletrónicas para designar a espécie animal assim denominada. Isto significa que a alta frequência de uso do nome no género feminino para que aponta a referida consulta pode ser simplesmente o resultado conjunto do uso antigo, como apelativo de uma espécie animal, e do uso recente, como nome de um jogo.

* Os exemplos em que o nome do jogo figura sem artigo definido não são índice do género neutro, que, aliás, não existe como categoria gramatical no português. A omissão do artigo definido em casos como o de «Baleia Azul faz vítimas entre os adultos» decorre antes de uma possibilidade do estilo abreviado (elíptico) das frases que constituem títulos nos noticiários.

Pergunta:

Tenho um trabalho em mãos cujo título provável será:

"Árabes e Islão na literatura e no pensamento portugueses (1826-1935)"

"Árabes e Islão na literatura e no pensamento português (1826-1935)"

Qual é a formulação gramaticalmente mais correta?

Obrigado.

Resposta:

Os dois títulos estão corretos.

Depois de dois substantivos de géneros diferentes, cada qual no singular («na literatura e no pensamento»), o adjetivo faz a concordância de duas maneiras, conforme explicam Celso Cunha e L. Cintra, na Nova Gramática do Português Contemporâneo (Lisboa, Edições João Sá da Costa, 1984, pág. 274; manteve-se a ortografia original):

«[...] Se os substantivos são de géneros diferentes e do singular, o adjectivo pode concordar:

a) com o substantivo mais próximo (concordância mais comum):

A professora estava com uma saia e um chapéu escuro.

Estudo o idioma e a literatura portuguesa.

b) Com os substantivos em conjunto, caso em que vai para o masculino plural (concordância mais rara):

A professora estava com uma saia e um chapéu escuros.

Estudo o idioma e a literatura portugueses

Confrontando as sequências em questão com as regras enunciadas na citação, conclui-se que o primeiro título está conforme a regra b), e o segundo título decorre da regra a).

Refira-se que os preceitos estabelecidos por Cunha e Cintra (1984) são reiterados por outras fontes; p. ex.: Evanildo Bechara, Moderna Gramática Portuguesa (Rio de Janeiro, Editora Lucerna, 2003, pág.s 545/546); Paul Teyssier, Manual de Língua Portuguesa, Coimbra Editora, 1989, ...

Pergunta:

O uso de um infinitivo simples no lugar de um infinitivo composto marca uma simplificação dos tempos verbais, depende do grau de formalidade ou possuem uma intercambialidade plena, sem comprometer o significado ou sentido da frase?

«Depois de correr até a esquina, voltou sem fôlego», ou «depois de ter corrido até a esquina, voltou sem fôlego??

«Depois de ser soldado nunca deixou de ser», ou «depois de ter sido soldado nunca deixou de ser»?

Agradeço antecipadamente.

Resposta:

Trata-se  da possibilidade da substituição de uma forma pela outra – de "intercambialidade", como se sugere na pergunta –, sem incorrer em incorreção ou alteração significativa no significado da frase. O infinitivo simples (IS) pode substituir o infinitivo composto (IC), mas a inversa não é sempre possível.

Assim, nos contextos apresentados são possíveis os dois tipos de infinitivo. No entanto, se numa frase ocorre um advérbio ou uma locução adverbial com sentido de futuridade, só é possível o IS (o * indica incoerência semântica):

1. A Catarina lamenta viajar para Paris amanhã.

2. *A Catarina lamenta ter viajado para Paris amanhã.

Note-se, porém, que o IC pode ter valor de futuro. Por exemplo, quando faz parte de uma frase em que ocorre uma oração temporal com o verbo no futuro do conjuntivo:

3. A Maria espera ter acabado Guerra e Paz, quando o pai regressar do estrangeiro.

Em 3, o IC «ter acabado» exprime uma ação futura – «ter acabado Guerra e Paz – que é anterior a outra também futura – ««regressar do estrangeiro». Na frase 3 pode, contudo, ocorrer também o IS, conforme o princípio geral acima enunciado, como acontece no exemplo a seguir:

4. A Maria espera acabar Guerra e Paz quando o pai regressar do estrangeiro.

Obs.: Informação e exemplos da Gramática do Português da Fundação Calouste Gu...