Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

«Os anos que vivi na aldeia que me viu nascer», ou «os anos em que vivi na aldeia que me viu nascer»?

Resposta:

As duas sequências estão corretas, mas ocorrem em contextos diferentes. A seguir, cada sequência é objeto de um breve comentário:

1. «... os anos que vivi na aldeia que me viu nascer»

No sentido de «passar», o verbo viver seleciona um complemento direto: «Vivi muitos anos na aldeia que me viu nascer.» Trata-se, portanto, de um complemento sem preposição, o que significa que numa estrutura relativa também não ocorre a preposição: «Foram vários os anos que vivi na aldeia que me viu nascer.»

2. «... os anos em que vivi na aldeia que me viu nascer».

Esta sequência é possível, se «anos» se referir a um conjunto de anos como unidades cronológicas, de calendário, e viver ocorrer sem complemento direto. Nesse caso, a construção relativa em 2 pressupõe uma frase simples como «Vivi em 2010 e em 2014 na aldeia que me viu nascer». Esta frase permite a construção de uma frase complexa com uma configuração compatível com o uso da preposição antes do pronome relativo: «Fui feliz nos anos em que vivi na aldeia que me viu nascer».

Porém, deve assinalar-se que, tanto na oralidade como na escrita literária, se documenta a omissão da preposição quando esta precede um pronome relativo cujo antecedente tem valor temporal (ver Textos Relacionados). Vasco Botelho de Amaral (Grande Dicionário de Dificuldades Subtilezas do idioma Português, 1958) registou esse uso, observando:

«Que = em que, em expressões de tempo: "a noite que (em que nasceu..."(I, 16); "desde o dia que (em que) o Arcebispo se viu encarregado..." (I, 75). Cf. Vida de D. Frei Bartolomeu os Mártires, Frei Luís de Sousa. O povo e os melhores autores prat...

Pergunta:

Gostaria de saber se a locução conjuntiva «conquanto que» pode ser usada, além de concessiva, como conjunção condicional, pois já a vi incluída em alguns livros no rol das conjunções condicionais e até em sites especializados de língua portugueses [...] ou se apenas foram lapsos.

Desde já fico muito grato se puderem me esclarecer tal dúvida.

Resposta:

Só pode ser lapso, em lugar da locução «contanto que».

A sequência «conquanto que» não é uma locução legítima, porque a forma que está correta e que se usa efetivamente é apenas conquanto, não com sentido condicional, mas com valor concessivo, conforme se observa no Dicionário Houaiss: «introduz uma oração subordinada que contém a afirmação de um fato contrário ao da afirmação contida na oração principal, mas que não é suficiente para anular este último; embora, se bem que, não obstante. Ex.: não concorreu, conquanto pudesse fazê-lo».

Com valor condicional, o que se regista é a locução conjuntiva «contanto que», como subentrada ao advérbio contanto, o qual, curiosamente não parece ocorrer sozinho, de acordo com o Dicionário Houaiss, que, apesar de lhe atribuir o significado de «sob determinada condição», anota que a palavra só figura como parte da locução em apreço. O mesmo faz praticamente o dicionário da Academia das Ciências de Lisboa, que regista contanto como simples elemento da locução contanto que; esta aparece em subentrada, assim definida e abonada: «indica condição e usa-se com o verbo no modo conjuntivo. ≃ CASO, DESDE QUE. Não me importo de ficar até mais tarde, contanto que depois me leves a casa

Pergunta:

Há muitas dúvidas quanto a aplicação do infinito pessoal e impessoal. Muitas vezes, aplico o impessoal, quando em dúvida.

Na frase «a chama do Espírito Santo impulsiona os jovens a respirar (em) e seguir (em), etc.», creio que o infinito pessoal («respirarem») é o mais aconselhável. Qual a forma mais certa?

Resposta:

Na frase em questão, é correto empregar quer o infinitivo pessoal («respirarem e seguirem»), quer o infinitivo impessoal («respirar e seguir»)1.

O verbo impulsionar é como verbo incentivar, e este como os verbos aconselhar, convidar ou obrigar, isto é, trata-se de verbos2 que podem ser seguidos de uma oração com o verbo no infinitivo1. Geralmente, este infinitivo fica no plural, se o seu sujeito estiver no plural (ver respostas aquiaqui e nos Textos Relacionados):

1. A chama do Espírito Santo impulsiona os jovens a respirarem e seguirem o seu caminho.

No entanto, também se aceita que o verbo ocorra no singular, apesar de o seu sujeito aparecer no plural (cf. resposta sobre o verbo convidar):

2. A chama do Espírito Santo impulsiona os jovens a respirar e seguir o seu caminho.

Este comportamento também se verifica nas orações de infinitivo que complementam os outros verbos mencionados.

Observe-se que o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa atesta o uso de impulsionar com um grupo nominal seguido de grupo preposicional: «a má política económica pode impulsionar um país para o abismo». Contudo, na mesma fonte, apresenta-se um exemplo da possibilidade de o complemento nominal se associar...

Pergunta:

Devemos escrever «Ele adorava-a como a uma deusa» ou «Ele adorava-a como uma deusa»? Devemos escrever «amar a Deus» ou «amar Deus»?

Obrigado.

Resposta:

Todas as frases em questão estão corretas, mas convém compreender de que modo se constroem e em que condições são usadas.

Com verbos que exprimem sentimento, pode acontecer que o complemento direto venha regido de preposição:

1. «Só não amava a Jorge como amava ao filho.» (cf. C. Cunha e L. Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, 1984, p. 143)

2. amar ao próximo (exemplo da Gramática do Português, Fundação Calouste Gulbenkian, 2013, p. 1169)

3. amar a Deus (idem, ibidem)

Em qualquer caso, é também possível o complemento sem preposição (é, aliás, a opção talvez mais intuitiva na atualidade): «só não amava Jorge como amava o filho»; «amar o próximo»; «amar Deus».

Assinale-se, porém, que, no caso da construção com a conjunção como, a preposição a, ao associar-se a expressões referentes a pessoas, permite desambiguar a referência do termo da comparação:

4. Ivone estimava Alda como a uma irmã.

Em 4, a preposição permite indicar que o termo da comparação tem o mesmo referente que o complemento direto marcado pelo pronome -a. Se a preposição não ocorresse, a frase tornar-se-ia ambígua: «Ivone estimava Alda como uma irmã» (= «Ivone, como se fosse uma irmã, estimava Alda», ou «Ivone estimava Alda como se esta fosse uma irmã»?)

A po...

Pergunta:

Num texto que li hoje, uma das personagens dizia o seguinte: «Ele tem um caderno na sala de aulas.»; ao que o interlocutor respondeu com esta resposta: «Vistes-lo?». Ora o [programa] Word quer que eu corrija a resposta/pergunta para «vistes-lho». Faz sentido?

Muito obrigado!

Resposta:

A forma «vistes-lo» está efetivamente incorreta, porque ocorre:

a) ou em lugar de viste-o («tu viste-o»), forma do verbo ver conjugado pronominalmente na 2.ª pessoa do singular do pretérito perfeito do indicativo;

b) ou em lugar de viste-lo («vós viste-lo»), forma do verbo ver conjugado pronominalmente na 2.ª pessoa do plural, também do pretérito perfeito do indicativo.

Em (b), a forma verbal perde o -s final e o pronome toma forma -lo, conforme as regras que alteram os pronomes pessoais átonos o(s) e a(s) de 3.ª pessoa,  quando estes figuram depois da forma verbal (ênclise).

Quanto a vistes-lho, é possível como forma da conjugação pronominal, mas resulta um tanto forçada, pois só se realiza em situações muito especiais. Por exemplo:

1. O aluno fez o exame de manhã. Vós vistes-lho?

Para contextualizar uma sequência como a apresentada 1, pode imaginar-se alguém que conserva o uso das formas correspondentes à 2.ª pessoa do plural e que interpela os examinadores do exame feito por certo aluno. A forma lho é a contração dos pronomes lhe que marca o interessado – «o aluno» – na ação referida pela frase (nos estudos gramaticais, fala-se em dativo de interesse), enquanto o retoma a referência de «o exame».