Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Poderiam, por favor, esclarecer-me quanto ao significado – e correção – da expressão "conversa de pé de orelha"?

Grato.

Resposta:

A expressão generalizada e consagrada é de facto «de pé de orelha», que faz parte de «conversa de pé de orelha», que significa «conversa confidencial»1 ou «conversa séria (geralmente para repreender)». Note-se, porém, que é expressão por dicionarizar, apesar de ter certa frequência atualmente tanto no português de Portugal como no português do Brasil2. Talvez se trate de uma simplificação de «conversa de ao pé da orelha», no sentido de «conversa em que os interlocutores estão muito próximo um do outro», mas esta conjetura não encontra confirmação pela mesma razão de a expressão não ter registo lexicográfico.

1 José Cunha Oliveira, Escritas e Falares da Nossa Terra (3/08/2008): «conversa de pé de orelha – conversa confidencial, confidência».

2 A secção histórica do Corpus do Português não faculta nenhuma ocorrência da expressão, mas do conjunto de textos em português contemporâneo (com amostras de todas as variedades atuais) extraem-se 23 ocorrências identificáveis quer com o português de Portugal quer com o português do Brasil.

Pergunta:

Gostaria de saber se é aceitável pronunciar-se e escrever-se «meter-se à bulha». Por exemplo, no Infopédia, pode ler-se «meter à bulha – provocar a discórdia entre». Mas está correto dizer «meter-se à bulha», querendo esta última construção significar «meter-se numa rixa, envolver-se numa quezília»? E, neste sentido, existe alguma palavra que seja definida como «grande luta, grande desavença»? Ou as palavras bulha e rixa significam, só por si, uma grande rixa?

Grato pela atenção.

Resposta:

«Meter à bulha» é de facto expressão registada com o sentido apontado na pergunta, mas o uso reflexivo de meter nesse contexto – «meter-se à bulha» – afigura-se estranho, porque cancela a sugestão de manipulação associada a «provocar discórdia entre» (entenda-se: quem manipula exclui-se da ação que quer influenciar ou desencadear). No entanto, a expressão «à bulha» é compatível com outros verbos no sentido de «meter-se numa rixa/numa quezília/em pancadaria»; por exemplo, «andar à bulha» ou «pôr-se à bulha». Além disso, em alusão ao envolvimento numa discussão ou numa cena de violência, meter é igualmente possível mas numa construção ligeiramente diferente: «meter-se na bulha», isto é, «meter-se na discussão ou na pancadaria». Note-se ainda que bulha pode ter valor intensivo, próximo do de «grande desavença», visto que também significa «movimentação e confusa» (Dicionário Houaiss); e o mesmo se pode dizer de rixa, definível como «grande tumulto e perturbação da ordem» (idem).

Observe-se, por último, que a expressão «à bulha» faz parte do discurso informal e até corrente, e, nesse contexto, é adequada, mas, num texto literário, pode também ser adequada. Já num texto administrativo pode parecer estranha ou desadequada, e, nesse caso, pode ser substituída por rixa ou altercação: «envolveram-se numa rixa» «envolveram-se numa/tiveram uma altercação».

Pergunta:

No termo acento, não me é claro o motivo do substantivo ser escrito acento, e não "acêntuo", que concordaria perfeitamente com a conjugação da sua forma verbal: acentuo, acentuas, acentua, etc. A exemplo do substantivo perpétuo: perpetuo, perpetuas, perpetua, etc. De acordo com o que eu conheço da lógica da língua portuguesa, "acêntuo" deveria ser um substantivo (bem como "átuo", em vez de ato), e, "acento", a primeira pessoa do presente do indicativo do verbo "acentar", que não é uma palavra com significado na língua portuguesa. Qual a razão dessa forma não vigorar na língua portuguesa, ou o porquê de usar-se acento, e não "acêntuo"?

Resposta:

A pergunta parte do pressuposto (errado) de que as palavras acento (nome), perpétuo (adjetivo) e ato (nome) derivam de alguma forma direta dos verbos com que relacionam, respetivamente, acentuar, perpetuar e atuar. E parece também julgar-se que, aceitando acento como nome, então – prevendo a eventualidade de se contra-argumentar com um resultado ilegítimo –,  também se deve aceitar "acento" como 1.ª pessoa do singular do presente do indicativo de um verbo com a forma de infinitivo "acentar", em lugar da que de facto é legítima, acentuar.

Nada disto, porém, funciona como supõe a pergunta, porque sucede que, na estruturação de uma família de palavras, não contam apenas a derivação ou a composição que é possível no português contemporâneo. Apesar de se observarem alternâncias vocálicas em pares como almoço (1.ª pessoa do presente do indicativo do verbo almoçar, com o aberto)/almoço (substantivo, com o fechado), não são elas de molde a concluir que a segunda forma deriva da primeira no contexto linguístico contemporâneo. De forma semelhante, não se pode afirmar que o adjetivo perpétuo  deriva de perpetuo (1.ª pessoa do presente do indicativo do verbo perpetuar) ; e menos ainda é aceitável pensar que haverá uma «lógica da língua portuguesa» a legitimar as formas nominais "acêntuo" e "átuo", que, evidentemente, estão incorretas. É preciso ter em conta a história das palavras, considerando a diacronia quer das suas relações de derivação quer da sua integração no léxico do português.

Assim, consultando o

Pergunta:

Eu uso a expressão «ecografia a 3D», mas fui corrigida, e dizem-me que deve ser «ecografia em 3D». Uma vez que estou a usar o a enquanto preposição de modo/meio, parece-me correcto. Já o em parece-me errado, uma vez que todas as ecografias têm 3 dimensões, mas algumas são feitas "a" três dimensões. Sou eu que estou errada?

Resposta:

As duas preposições estão corretas. Digamos que a construção com em é mais vernácula do que a construção com a. Contudo, esta última também se aceita, em expressões como «televisão a cores/a preto e branco», «desenho a lápis/a carvão», ou «pintura a óleo», casos que permitem legitimar a sequência «a 3D».

Pergunta:

O plural do singular feminino tardoz é masculino? Será correcto dizer "a tardoz", "os tardozes"?

Resposta:

Diz-se «o tardoz», cujo plural é «os tardozes»

É bastante curioso o caso de tardoz, que significa genericamente «lado tosco de uma pedra de cantaria que fica voltado para dentro da parede»1 (Dicionário Houaiss), porque a maioria dos dicionários lhe atribui o género masculino, «o tardoz», o que legitima o plural «os tardozes». No entanto, o Dicionário Priberam regista a palavra como substantivo do género feminino, tal faz o dicionário brasileiro Aurélio XXI, que, no entanto, junta contraditoriamente uma atestação do vocábulo no género masculino1. Sendo assim, porque o género masculino se afigura mais consensual, recomenda-se que a palavra seja usada no masculino, género que se mantém no plural: «o tardoz», «os tardozes».

1 A mesma palavra (ou, pelo menos, a mesma forma fonética) é ou foi também usada como termo do calão, conforme documenta Alberto Bessa, em A Gíria Portuguesa, Livraria Central Editora, 1919, pág. 285: «Tardós (ant.) – o anus.» (manteve-se ortografia do original).

2 «[N]o tardoz da porta uma cruz de S. Lázaro, pregada com massa» (Alexandre Herculano, Lendas e Narrativas, II [Paris, Lisboa, Rio de Janeiro, Livraria Aillaud e Bertr...