Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Na frase «o André encontrou um baú e lá dentro tinha um mapa», pergunto-vos se a frase é aceitável ou se teria sido aconselhável o uso do verbo haver.

Obrigado.

Resposta:

Nas modalidades culta e corrente do português de Portugal, emprega-se sempre haver com valor existencial e, portanto, diz-se e escreve-se «havia um mapa». No entanto, a frase em questão pode ser aceitável, se, por exemplo, num diálogo se pretender imitar um regionalismo da Madeira.

Na verdade, além de ter com valor existencial ocorrer de forma muito frequente ou generalizada no português do Brasil, regista-se este uso também regionalmente em Portugal. É o caso da Madeira, onde ter existencial está disseminado entre os falantes, conforme se atesta no sítio eletrónico Aprender Madeira (consultado em 09/02/2020; sublinhado nosso):

«[...] esta construção está presente em variedades do PE [português europeu], nos arquipélagos dos Açores e Madeira [...]. Trata-se de uma construção em que o verbo ter é usado não com o seu valor de posse, como na gramática da variedade normativa do PE, mas sim como verbo existencial, em vez da variante normativa com haver, fenómeno que se encontra ilustrado através dos exemplos, em (7) [...]:

7) a. “Porque aqui à nossa frente, tinha um alto, tinha um moinho de vento e não via a casa da minha mãe! [...]”;

b. “Mas tinha muitos moinhos por aqui fora. ([...]” [...].»

A substituição de haver por ter decorre de uma tendência de séculos, que levou, por exemplo, a ter tornar-se verbo auxiliar dos tempos compostos: «ele havia tido» > «ele tinha tido» (cf. "Acerca da história dos verbos haver e ter").

Pergunta:

«Enquanto o coronavírus avança, a xenofobia alastra-se pelo mundo» titulava o jornal Público uma notícia sobre a desinformação que se espalhou rapidamente na Internet e nas redes sociais por causa desta patalogia. Dúvida minha: não devia ser escrito «...a xenofobia alastra pelo mundo»?

Muito obrigado.

Resposta:

O verbo alastrar pode ser usado como verbo reflexo. As duas frases, estão, portanto, certas.

No Dicionário Gramatical de Verbos Portugueses (Texto Editora, 2007,  com direção científica de João Malaca Casteleiro) encontram-se abonações para os dois usos:

(1) «A infeção alastrou a todo o corpo.»/ «A inundação alastrava e não havia anda a fazer.»

(2) «O fumo já se alastrava a todo o edifício.» / «Os boatos alastram-se facilmente.»

Em (1) e em (2), o verbo ocorre em construções diferentes, mas igualmente corretas, no sentido de «propagar-se».

Pergunta:

A atribuição [da] designação «loja do cidadão» parece coerente e em uso desde que tal instalação passou a ser disponibilizada.

Contudo, pretendeu-se "reescrever a história" em Leiria, e algum intelecto, talvez instalado num corpo feminino, o que não sei, ou, talvez um pretenso arauto das novas ideologias de género, entendeu que passe a ser «loja de cidadão», substituindo a partícula do por de. Pensei tratar-se de um engano na identificação na entrada, mas concluí que em todos os locais assim se afixa. Aparenta-se estar perante a idiossincrasia de um indivíduo ou grupo que livremente dispõe de nós (quase) todos para se impor. Em todo o caso, o que gostarei de saber é mesmo se a língua portuguesa sai ou não vilipendiada e como se deve escrever e designar a referida loja.

Agradeço.

Resposta:

Os espaços de atendimento que, em Portugal, eram denominados Lojas do Cidadão, conforme o Decreto-Lei 74/2014 de 13 de maio, passaram a ser referidos por Lojas de Cidadão1, de acordo com o disposto no n.º 2 do art.º 6.º do Decreto-Lei 105/2017 de 23 de agosto - citamos:

«2 — Para efeitos de republicação, onde se lê «Lojas do Cidadão», «Loja do Cidadão», «Espaços do Cidadão» ou «Espaço do Cidadão», deve ler -se, respetivamente, «Lojas de Cidadão», «Loja de Cidadão», «Espaços Cidadão» ou «Espaço Cidadão»»

No documento citado, não se explica a que se deve a alteração.

Supondo, como o consulente sugere, que à alteração assistiu alguma preocupação com questões de igualdade de género, pode admitir-se que a intenção do uso do nome cidadão sem artigo definido terá sido a de esbater a assimetria do contraste de género no plural, já que é o masculino que prevalece na concordância adjetival com nomes de géneros diferentes coordenados (p. ex., «o João e a Rita estão cansados», e não *«o João e a Rita estão cansadas»).

Não configura a alteração feita pelo legislador um erro linguístico, pois a supressão do artigo definido tem muitas vezes o efeito de conferir características adjetivais ao substantivo:

(1) roupa de criança – roupa infantil

(2) roupa de homem – roupa masculina

(3) médico de família – médico "familiar"

No entanto, se a intenção foi atenuar a redundância e o reforço de marcas do género masculino (a do artigo definido masculino o e a do nome cidadão), cabe duvidar da eficácia de tal alteração. Na verdade, o género masculino está gramaticalizado, razão por que sempre coincide referenci...

Pergunta:

Num índice onomástico, o que deve vir primeiro: Oakes ou O'Connor?

Obrigado.

Resposta:

Os nomes próprios irlandeses começados pela forma O' como O'Connor ou O'Neill – formas anglicizadas de, respetivamente, Ó Connail e Ó Néill, patronímicos irlandeses introduzidos pela partícula ó – são alfabetados como "oconnor" e "oneill" e, portanto, seguem a ordem norma de A a Z. Por outras palavras, a forma O' agrega-se ao nome associado (Connor, Neill), formando com este uma unidade onomástica inseparável na alfabetação.

Este procedimento é confirmado pela consulta de um dicionário onomástico – o de José Pedro Machado, * –, em que Oneca precede O'Neill., assim sugerindo que Oakes virá antes de O'Connor.  O mesmo fazem duas enciclopédias editadas em Portugal: na Enciclopédia Verbo Luso-Brasileira de Cultura, O'Neill aparece depois de Onega e antes de onfacite; na Grande Enciclopedia Portuguesa e Brasileira, o mesmo nome segue-se a odonéstis e precede  odont.../odonto

Pergunta:

Qual a origem etimológica e o significado do nome Rocim (pl. Rocins)?

Resposta:

O nome próprio parece ter origem no nome comum rocim, que significa «cavalo de aspecto robusto, forte, empregada sobretudo na caça e na guerra» ou «cavalo de pequena estatura e/ou magro, fraco, sem vigor; rocinante».

A palavra tem apenas registo como topónimo no Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa (2003), de José Pedro Machado, autor que o localiza nos concelhos de Gouveia (Vale de Rocim) e Vidigueira (Choça de Vale de Rocim), respetivamente nos distritos da Guarda e de Beja. Como antropónimo, é possível que tenha origem no uso de rocim como alcunha (apelido no Brasil), mas, para elaboração desta resposta, não se encontraram fontes que confirmassem tal hipótese.