Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

A expressão «ruço de mau pelo» tem qualquer coisa a ver com o romance Rosso Malpelo de 1878 do escritor italiano Giovanni Verga?

O romance conta a história de Rosso Malpelo, um garoto ruivo que trabalha numa pedreira de areia vermelha na Sicília. Pressionado pelos preconceitos da mentalidade popular acerca das pessoas com cabelos ruivos, Roso Malpelo não encontra afeto nem mesmo junto da própria mãe.

Resposta:

A expressão não se deve ao texto mencionado, que, em verdade, é um conto, e não um romance, que faz parte de um volume intitulado em italiano Vita dei Campi, do autor siciliano Giovanni Verga (1840-1922)1.

A expressão  «ruço de mau pelo» ou «ruço de má pelo» – em Portugal, frequentemente completado com a sequência «quer casar, não tem cabelo» –, encontra paralelo noutras línguas da Europa, como é o caso do italiano, só que em referência não a gente ruça, ou seja, de cabelo loiro, mas, sim, a pessoas de cabelo ruivo. Trata-se de um dito associado a uma superstição abordada num conjunto de apontamentos publicado em 1918 na Revista Lusitana (RL):

«Quanto à aversão manifestada contra os ruivos [nos] provérbios, parece que ela se funda na crença de que Judas era ruivo – crença corrente em Portugal e que em França deu origem à locução avoir un poil de Judas, isto é, ter os cabelos ruivos.» (José Maria Adrião, "Retalhos de um Adagiário", RL, vol. XIX, p. 42)

Acrescente-se que ruço pode significar não apenas «loiro», mas também «ruivo» em alguns dialetos portugueses (por exmplo, em Trás-os-Montes e no norte da Beira Interior)2 Além disso,  a literatura portuguesa do final da Idade Média também documenta o preconceito contra os ruivos, como sucede na Crónica de D. Fernando, de Fernão Lopes (1380-1460), segundo José Maria Adrião no artigo já citado:

«Vem a propósito um caso contado por Fernão Lopes, e que revela a má conta em que já no século XIV eram tidos os ruivos: Quando Henrique II, d...

Pergunta:

Há dias, num artigo de jornal, tropecei na seguinte frase:

«Não há dia que passe sem que a corrida presidencial nos Estados Unidos nos ponha o coração aos pulos. Nuns dias agarramo-nos ao mais ligeiro sinal positivo, noutros somos realistas: a economia deve garantir a Trump o seu segundo mandato.»

A minha dúvida: «... sem que a corrida presidencial nos Estados Unidos nos ponha o coração aos pulos», ou, antes, «... sem que a corrida presidencial nos Estados Unidos NÃO nos ponha o coração aos pulos» ?

Os meu agradecimentos.

Resposta:

A frase em causa está correta, porque se pretende dizer, afinal, que «a corrida presidencial nos põe o coração aos pulos em todos os dias que se passam». Mas igualmente correta e semanticamente equivalente se revela a sequência «não há dia que passe sem que a corrida presidencial nos Estados Unidos (EU) não nos ponha o coração aos pulos», 

O significado da frase original ficará um pouco mais claro com a supressão da oração relativa «que se passe» e a substituição da oração subordinada adverbial «sem que...» por uma oração subordinada relativa:

(1) «Não há dia em que a corrida presidencial nos EU não nos ponha o coração aos pulos.»

A negação marcada por «não nos ponha o coração aos pulos» pode ser transposta como oração subordinada adverbial de sem + infinitivo ou sem que + conjuntivo:

(2) «Não há dia (que se passe) sem a corrida presidencial nos EU nos pôr o coração aos pulos.»

(3) «Não há dia (que se passe) sem que a corrida presidencial nos EU nos ponha o coração aos pulos.»

Tanto em (2) como em (3), a oração principal é negativa – «não há dia que passe» –, tal como a subordinada – «sem a corrida....» ou «sem que a corrida...». Neste caso, «[...] as duas negações anulam-se e a oração subordinada passa a designar uma situação que efetivamente aconteceu» (Gramática do Português, Lisboa Fundação Calouste Gulbenkian, 2013, p. 2027).

Contudo, é também possível inserir o advérbio não na oração subordinada, sem alteração de significado:

(4) «Não há dia que passe sem que a corrida presidencial nos EU não nos ponha o coração aos pulos.»

Em (4), a segunda ocorrência de não tem caráter expletivo1, isto é, empregando terminologia gramatical mais tradicional, funci...

Pergunta:

No Brasil, existe uma paroxítona muito usada, referente a uma tribo indígena: ianomâmi.

Entretanto, parece-me uma palavra estranha, já que o mais natural, a meu ver, seria escrevê-la com a letra é no final e sem o acento circunflexo: “ianomame”.

A pronúncia permaneceria a mesma, e a palavra estaria adequada à forma da maioria dos vocábulos da língua.

Resposta:

Compreende-se a argumentação do consulente, pois a grafia "ianomame" é possível. Porém, não é lida da mesma maneira pelos diferentes falantes de português.

Em Portugal e noutros países, a forma "ianomame" do etnónimo em questão não será lida com i final, mas soará, sim, com um e muito fechado, semelhante ao e átono ou mudo do francês. A forma ianomâmi, que representa uma palavra grave (ou seja, paroxíotna), permite a leitura do i final com as diferentes pronúncias das variedades do português. É esta a forma que se fixou na maioria dos diferentes vocabulários ortográficos disponíveis1.

Os Ianomâmis constituem um grupo étnico indígena que habita entre o nordeste do Amazonas, no Brasil, e a Venezuela. As línguas maternas ou tradicionais dos ianomâmis (ianomâmi, ianomam, ianam, sanumá) formam uma família linguística distinta de outras2.

 

1 Ianomâmi é a grafia registada no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa da Academia Brasileira de Letras, no Vocabulário Ortográfico Comum da Língua Portuguesa do Instituto Internacional da Língua Portuguesa e no Vocabulário Ortográfico da Porto Editora (disponível na Infopédia). O termo não consta do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa da Academia d...

Pergunta:

Qual a etimologia de noite?

Obrigada!

Resposta:

Como já anteriormente se esclareceu, a palavra noite vem de nocte, forma do latim vulgar que corresponde ao latim clássico  nox, noctis.

Do latim nocte ao português noite, ocorreu a mesma transformaçao que levou de octo a oito, ou seja,  deu-se um fenómeno de vocalização no grupo latino -ct- tanto no português como noutras línguas românicas. Paul Teyssier, na sua História da Língua Portuguesa (Lisboa, Sá da Costa Editora, 1982, p. 12), referindo-se ao período galego-português, descreve esta mudança, em contraste com a evolução do espanhol (ou melhor, a sua génese castelhana):

«O grupo -ct- [...] passa a [-yt-]; ex.: nocte > *noyte. A língua portuguesa mantém ainda a pronúncia noite, enquanto o espanhol, continuando a evolução, apresenta hoje a africada [tš], escrita ch: noche. Temos assim:

galego- português                          castelhano

nocte > *noyte                                                  noite                                                 noche

Pergunta:

As palavras mares, rapazes, fáceis, dores, luzes têm como vogal temática a letra e ou esta faz parte da desinência indicativa de plural?

Resposta:

Nos casos dos plurais de nomes e adjetivos terminados em -r e -zmares, dores, rapazes, luzes –, considera-se que a vogal e constitui um segmento adicional para apoio da desinência de plural – diz-se que é uma vogal epentética –, pelo que pode afirmar-se que faz parte da desinência.

Já, com plurais de nomes e adjetivos terminados em -l, por exemplo, fáceis, a análise é feita de outro modo: o i é a realização fonética da consoante l, que faz parte do tema (fácil-).