Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Já vi duas versões ligeiramente diferentes da evolução fonética de nostrum para nosso. Diferem nos fenómenos do interior da palavra. Uma considera que houve síncope do /t/ e assimilação do /r/; a outra considera que houve síncope do /r/ e assimilação do /t/.

Gostaria que me esclarecessem, por favor.

Resposta:

Só me foi possível encontrar fontes que tendem a confirmar a segunda descrição ou a convergir com ela: no latim nostrum, teria ocorrido relativamente cedo – talvez já no latim vulgar – a queda (síncope) de r, seguida da assimilação de t por s, num processo que conduziu a nosso e às formas da sua flexão.

Assim, o que o filólogo galego Manuel Ferreiro (Gramática Histórica Galega, Edicións Laiovento, 1995, p. 158)  diz sobre o galego medieval é válido para o português medieval (como se sabe, os dois idiomas confundem-se num só à medida que recuamos na história):

«Na secuencia latina -STR- parece ter habido certa tendencia á evolución -ss- ([s]) nalgún vocábulo isolado: NŎSTRU > nosso [...]. Mais seguramente xa estamos perante as formas latino-vulgares *NŎSSU [...], como [parece] indicar tamén a forma nuesso [...] do español antigo.»

Uma hipótese um tanto diferente está exposta, por exemplo, em Edwiin B. Williams, Do Latim ao Português (Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 2001, p. 160):

«[A] primeira pessoa do plural: nostro era usado em português arcaico somente na expressão nostro Senhor referente a Deus [...]. A forma *nossum deve ter existido em latim vulgar de certas regiões [...]. Desenvolveu na relação nos:*nossum, por analogia com a relação me:meum, tornando-se o s longo para p...

Pergunta:

O meu falecido pai utilizava um termo para descrever quando por um rego de água estava a verter bastante. Este termo era «deitar de enxotão».

Pergunto se esta palavra tem alguma razão de ser e qual a origem?

Obrigado.

Resposta:

A expressão é relativamente transparente, porque deriva do verbo enxotar, que significa «expulsar com agressividade». Sendo assim, percebe-se que «deitar de enxotão» quererá dizer «fazer sair com força (no caso, água)».

Observe-se, no entanto, que não foi aqui possível encontrar fontes que registem a expressão e lhe atribuam uso regional.

Pergunta:

À semelhança de computorizado em alternativa a computadorizado, pode usar-se "empreendorismo" em alternativa a empreendedorismo?

Resposta:

A forma correta continua a ser empreendedorismo, e não se aceita "empreendorismo".

O caso de computorizado é um pouco diferente: está de facto descrito como resultado da queda da sílaba -do- na forma computadorizado1. Contudo, não será descabido conceber computorizar, «prover de computador, tratar por computador», e computorizado, «que está provido de computador, que é tratado por computador», como o aportuguesamento dos vocábuos ingleses computerise e computerised, com os mesmos significados. Mesmo assim, são formas discutíveis, e, portanto, há quem dê preferência às regulares, computadorizar e computadorizado.

Quanto à forma "empreendorismo", ao que parece recorrente entre vários falantes do português de Portugal, é esta provavelmente devida a um problema de dicção: a queda do e átono faz a palavra soar como "empreenddorismo", em que a dupla sequência consonantal pode ser realizada por uma consoante simples [d]. O termo inglês correspondente entrepreneurism, o mesmo que empreendedorismo, também não justifica a queda da sílaba em causa, dado que a sua base de derivação, entrepreneur, se distingue suficientemente de empreendedor (donde deriva empreendorismo) e não favorece uma reconfiguração da forma portuguesa.

 

1 Ver na Infopédia e no Di...

Pergunta:

Estou a fazer uma releitura das obras de João de Araújo Correia, conhecido pela sua correcção na escrita do português, e encontrei no livro "Terra Ingrata" no conto "A mulher do Narciso", a seguinte frase:

«No tanque onde as mulheres sujas procuravam desencardir os manachos em água estagnada...»

Procurei nos dicionários online, mas não encontrei significado para a palavra "manachos".

Será que me podem esclarecer?

Obrigado.

Resposta:

Pelo contexto, trata-se, com toda a probabilidade, de variante gráfica de manaxo, que, de acordo com o Novo Dicionário da Língua Portuguesa (1899), de Cândido de Figueiredo (1946-1925), significa, na região de Resende, rodilha (isto é, rosca de pano que se põe à cabeça, para transportar carga)1 e farrapo. A mesma fonte regista ainda a variante manaixo, que, na Beira, seria usado no sentido de «vestuário de mulher, garrido ou vistoso, mas de pouco preço».

No Dicionário de Regionalismo e Arcaísmos de Leite Vasconcelos (http://beta.clul.ul.pt/teitok/dra/index.php?match=starts&query=m&action=xdxf&start=100), também se regista manaixo, na aceção de «farrapo velho» e recolhido em São Martinho de Mouros (não longe, portanto de Resende), e outra variante "manoixo", ouvida em Baião.

João de Araújo Correia (1899-1985) usa a forma em questão, manacho, noutro conto de Terra Ingrata (1946):

(1) «Cavava a horta por suas mãos, fazia de comer, lavava os manachos [...].» (in

Pergunta:

Pode dizer-se que fr. é abreviatura da forma frei?

Obrigado.

Resposta:

Geralmente com maiúscula inicial, Fr. é abreviatura de frei.  Exemplo: Fr. Luís de Sousa (em vez de Frei Luís de Sousa).

A abreviatura em apreço tem tradição, encontrando registo, pelo menos, desde1940, ano em que a Academia das Ciências de Lisboa publicou o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, onde se consigna Fr. como redução de Frei1. Acrescente-se que, no Dicionário de Caldas Aulete (versão digital) se regista também a referida abreviatura: «s. m. || abreviatura das palavras freire e frade (que se escreve ordinariamente Fr.), de que se usa preceder os nomes dos frades e cavaleiros das ordens religiosas e militares: Frei Luís de Sousa; Frei Heitor Pinto.»

 

1 Pode não haver consenso quanto ao registo dicionarístico de Fr. com maiúscula inicial, como acontece no Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, que apresenta fr., com minúscula inicial. No entanto, compreende-se que a redução em causa ocorra com maiúscula, pelo facto de, entre membros do clero regular, se associar aos nomes próprios, deles fazendo parte.