Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

No décimo sétimo capítulo de A Queda de um Anjo, de Camilo Castelo Branco, consta a seguinte epígrafe: «In Liborium». Após alguma pesquisa, não consegui destrinçar o significado do vocábulo latino «Liborium», pelo que vos peço esclarecimento e uma tradução, se possível. Muito obrigado!

Resposta:

Liborium é uma das formas de Liborius, versão latina de Libório, que é o nome de batismo da personagem de Libório Meireles, do romance camiliano A Queda de um Anjo. Este nome, de origem obscura, é também o de um bispo da cidade francesa de Le Mans, S. Libório, que viveu no século IV (cf. José Pedro Machado, Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa).

Quanto ao título «in Liborium», diga-se que a preposição latina in pode significar «contra», pelo que «in Liborium» significa «contra Libório», nome da referida personagem camiliana. Este emprego da preposição in encontra-se, por exemplo, em Cícero (106 a. C.-43 a. C.): in deōs («contra os deuses», Cícero, Dē Nātūrā Deōrum 3.34, citado por Frederico Lourenço, Nova Gramática do Latim, Lisboa, Quetzal, 2019, p. 284). Na obra do mesmo autor latino, encontramos títulos que também ilustram este uso da preposição: In Catilinam («contra Catilina) e In Verrem («contra Verres»).

Pergunta:

Devemos escrever «Isto é coetâneo com o intuito de fazer alguma coisa de belo» (p.ex.) ou «Isto é coetâneo do intuito de fazer alguma coisa de belo»? No fundo, a minha dúvida prende-se com a questão de saber se (e porquê) devemos escrever «coetâneo com» ou «coetâneo de».

Obrigado.

Resposta:

Diz-se e escreve-se «coetâneo de», ou seja, o adjetivo coetâneo, que significa «que é da mesma idade, contemporâneo, coevo»1, constrói regência com a preposição de:

(1) «Ninguém presumirá que eu considere Calvino coevo de Voltaire, ou Damião de Góis coetâneo de Couriere.» (Camilo Castelo Branco, Boémia do Espírito in Francisco Fernandes, Dicionário de Regimes de Substantivos e Adjetivos, 23.ª edição, São Paulo, Globo, 1995)

A mesma regência têm os sinónimos contemporâneo e coevo.

É também possível a preposição a, segundo o dicionário de Francisco Fernandes (idem, ibidem):

(2) «Consta a ser a arquitetura militar coetânea do princípio do mundo.» (dicionário de Frei Domingos Vieira)

Esta preposição será, porém, muito rara ou estará em desuso, pois as coleções eletrónicas de textos literários e não literários (corpora) não parecem facultar abonações2.

Acrescente-se que não se vislumbra claramente uma razão de organização lógica ou semântica para a seleção preferencial da preposição de. Como se faz notar na Gramática do Português (Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2013, p. 1529), «a preposição de é aquela que a língua usa em contextos de completa gramaticalização, ou seja, em contextos nos quais a preposição não tem qualquer semanticidade e a sua única função consiste em estabelecer uma ligação entre um núcleo e o seu complemento ou modificador».

 

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Pergunta:

Na conhecida oração ave-maria, uma saudação à Virgem Maria, não deveria o vocativo Maria estar separado por vírgula («Ave, Maria, cheia de graça! O Senhor é convosco…», em vez de «Ave Maria, cheia de graça…», como aparece em todos os textos?

O mesmo se poderia perguntar em relação àquela outra oração católica salve-rainha: «Salve, Rainha, Mãe de misericórdia…», e não, como vemos sempre, «Salve Rainha, Mãe de misericórdia…».

Sabendo nós que os imperativos latinos ave e salve se tornaram interjeições de saudação em português («Viva, Maria!», «Olá, Maria!»), poderemos considerar que a falta de vírgula nos textos das orações ave-maria e salve-rainha se enquadra no chamado «consagrado pelo uso»?

Como neste interessante artigo [de Gonçalo Neves], do Ciberdúvidas se refere, «é frequentemente citada (e até se encontra numa aventura de Astérix...) a frase com que os gladiadores, já na arena, saudavam o imperador antes de entrarem em combate: "Ave, Cæsar, morituri te salutant." É curioso notar que o tradutor Paulo Rónai se serviu de salve para traduzir este ave: "Salve, imperador, os que vão morrer saúdam-te..."»

É interessante notar que o dicionário em linha Infopédia regista o seguinte, devidamente virgulado: «do latim eclesiástico Ave, Maria, «ave, Maria!»”

Muito obrigado.

Resposta:

Em nome do Ciberdúvidas, agradece-se a pergunta, que, no fundo, já inclui a própria resposta.

Na verdade, é de esperar, como observa o consulente, que uma vírgula figure entre ave ou salve e o nome próprio Maria, tal como acontece com outras sequências formadas por uma saudação e um vocativo: «olá, Maria»; «bom dia, César». Sendo assim, «ave, Maria» e «salve, Rainha» estão corretos do ponto de vista dos preceitos de aplicação da vírgula, enquanto as formas «ave Maria» e «salve Rainha» estão incorretas.

No entanto, e como também bem assinala o consulente, geralmente nestas situações não se escreve a vírgula, numa prática que configura uma exceção que se enraizou na escrita de tais expressões. Daqui não decorre que se considere este uso tão ou mais correto; nota-se, aliás, que há oscilações no registo da vírgula associada à interjeição ave, ora ocorrendo ora não, como acontece num documento digital associado à liturgia das horas e incluído nas páginas do Secretariado Nacional da Liturgia (SNL):

(1) «Ave, Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco.» (Dezembro, Próprio dos Santos, SNL)

(2) «Ave Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco, bendita sois vós entre as mulheres e bendito é o fruto do vosso ventre. Aleluia.» (idem, ibidem)

Contudo, não se pense que neste caso a vírgula é facultativa, porque a consulta de uma obra religiosa impressa, o Missal Quotidiano Dominical e Ferial (Lisboa, Paulus Editora, 2012, p. 2625), apresenta a vírgula devidamente colocada entre a interjeição e o nome Maria:

(3) «Ave, Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco, bendita sois entre as mulheres.»

E, na mesma fonte, atesta-se a vírgula a separar a...

Pergunta:

Se o adjetivo referente ao género denominado ensaio é ensaístico, qual seria o adjetivo mais adequado para referir-me ao género jornalístico chamado perfil? Ocorreu-me a palavra "perfilístico"; porém, só encontrei esse termo num único trabalho académico na Internet, o que me fez levantar dúvidas quanto à sua suposta existência em língua portuguesa.

Desde já, agradeço-lhes a atenção.

Resposta:

Embora esteja bem formado – de perfilista + -ico –, o adjetivo perfilístico não parece ter por enquanto uso no sentido de «característico de perfilista, isto é, de quem escreve textos do género jornalístico chamado perfil».

Assinale-se que, embora escassas, são já antigas as tentativas de empregar perfilista como «redator/escrito de perfis biográficos»:

(1) «Hermes Lima insiste para que eu escreva uma série de perfis de homens públicos que conheci. A generosidade dêsse velho e grande amigo quer fazer de mim um "perfilista", sem levar em conta que o perfil é um dos gêneros literários mais difíceis» ( Jayme Junqueira Ayres, "Esboço de um perfil", Tribuna da Bahia. Caderno 3. Salvador, 3 abr. 1971).

Como o mesmo que o inglês profiler, no sentido de «pessoa que faz perfis criminais», justifica-se o uso de perfilista (ver Helder Guégués, "Jornalista no divã", no blogue Assim Mesmo, em 08/03/2009), assim reforçando a legitimidade da derivação de perfilístico. E, em espanhol, deteta-se o uso da forma homóloga perfilístico, mas no sentido muito genérico de «relativo a perfil»: «Este artículo ha puesto especial énfasis en el análisis perfilístico de los combatientes extranjeros [...] («Este artigo deu espacial ênfase à análise perfilística dos combatentes estrangeiros»).

São, portanto, exemplos pouco numerosos os que criam margem para a aceitação de perfilístico. Outra possibilidade alusiva a perfil encontra-se no verbo perfilar, donde se deriva perfilador, que ocorre em pági...

Pergunta:

Mais do que uma vez, tem aparecido o termo "esculateira" para designar uma cafeteira de café usada em tempos mais idos. Sempre presumi que se tratasse de uma corruptela do termo "chocolateira". Em pesquisas procurei perceber se este termo estava referenciado como tal ou apenas o que apareceria numa pesquisa pela Internet.

Em português de Portugal nada é referido, mas está disponível alguma informação oriunda do Brasil onde o termo é mesmo usado na sua forma corrompida: esculateira.

Trata-se efetivamente de uma corruptela de chocolateira? Há algumas referências linguísticas, históricas, etnográficas ou outras, relativamente a este termo?

Resposta:

A palavra em questão, cuja grafia mais adequada é escolateira e que significa «cafeteira», é, com toda a probabilidade, uma deturpação de chocolateira.

Tem registo já antigo, sob a forma escolateira, num artigo datado de 1938, da autoria do etnógrafao alentejano Pombinho Júnior (1898-1983) e publicado na Revista Lusitana (vol. XXXVI, pág. 203) com o título "Vocabulário alentejano (Subsídios para o léxico português)", onde se pode ler o seguinte:

«escolateira, s. f. Forma popular de chocolateira (distrito de Évora).»

O autor citado acrescenta na mesma página, em nota:

«Nas falas populares alentejanas a silaba inicial cho transforma-se em es = 's. Outros exemplos: chocalho = escalho, 'scalho; chocolate = escolate, 'scolate, etc.»

Este registo, mais abreviado, figura também em dicionários recentes dedicados aos regionalismos do Alentejo, como são, por exemplo, o Dicionário de Falares do Alentejo (3.ª edição, 2013), de Vítor Fernando Barros e Lourivaldo Martins Guerreiro, e em Falares e Ditarenhos do Alentejo (2.ª edição, 2017, Lugar das Palavras Editora), de Luís Miguel Ricardo. Mas a melhor prova de o regionalismo ainda hoje perdurar é a própria pergunta da consulente.

Mesmo no Algarve, a palavra não é desconhecida, pelo menos, na região de Monchique, como evidencia a entrada que lhe dedica Mário Duarte no seu Glossário Monchiqueiro (...