Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Alfredo Gomes, Júlio Nogueira, Luiz A. P. Victoria, entre outros gramáticos, consideram as seguintes expressões como galicismos sintáticos:«fazer dinheiro» (no sentido de «realizar, de conseguir dinheiro»); «fazer erros»(por «cometer erros»); «fazer música» ( por «compor música») ;«fazer passeio» (por passear ou «empreender um passeio»).

Gostaria de sabe se essas expressões já são aprovadas pela gramática normativa, já que são usadas com frequência, inclusive por grandes escritores contemporâneos.

Grato pela resposta.

Resposta:

A resposta depende de cada caso e um pouco da definição e identificação dos usos corretos na história mais recente da língua portuguesa nos diferentes países em que ela é língua materna, administrativa e literária. Observe-se, também, que a censura às construções em questão parece dever-se sobretudo à suposição de ocorrerem como simples decalques de construções estrangeiras, geralmente de origem francesa ou inglesa. Todavia não é certo que todas as quatro locuções sejam resultado direto de tal influência.

Assim:

1 Fazer dinheiro

É bastante discutível condenar hoje o uso de «fazer  dinheiro», porque esta expressão tem registo, por exemplo, num dicionário elaborado em Portugal, o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, que a Academia das Ciências de Lisboa publicou em 2001. Mesmo que, do ponto de vista normativo, se tenham levantado reservas às opções deste dicionário, importa salientar que «fazer dinheiro» já figura em obras de autores literários do século XIX ou de começos do seguinte, como abonam os seguintes exemplos:

(1) «O velho Soares é uma máquina de fazer dinheiro; vive no escritório» [José de Alencar (1829-1877), Sonhos d'Ouro (1872), in Corpus do Português, de Mark Davies)

(2) «(...) é ne...

Pergunta:

Vejo com frequência as locuções «face a» e «frente a» em textos da mídia e até em textos acadêmicos , inclusive de alunos de letras.

Sei também que [Celso] Luft, no Dicionário de Regência Nominal abona essa expressão assim como «frente a».

Gostaria de saber se o uso de «face a» e «frente a» já está liberado em textos formais?

Grato pela resposta e parabéns pelo belo serviço de vocês.

Resposta:

Ambas as locuções prepositivas são hoje aceitáveis do ponto de vista normativo.

É verdade que o gramático brasileiro Napoleão Mendes de Almeida1 (1911-1998) as condenava como erros graves. Contudo, Maria Helena de Moura Neves, no seu Guia de Uso do Português (2003), apesar  de referir que «as lições tradicionais não recomendam a expressão "face a" ("em face de, ante")», observa que «ela é de uso corrente, e não apenas na linguagem popular». Sobre «frente a» no sentido «em face de, ante, perante», a mesma autora assinala que é expressão vista como castelhanismo por puristas, mas tem emprego corrente.

Acrescente-se que, em dicionários recentes elaborados em Portugal, as locuções «face a» e «frente a» têm registo desigual. No dicionário da Academia das Ciências de Lisboa, estão consignadas como subentradas, respetivamente, de face e frente; mas não figuram nem no Dicionário Infopédia nem no Dicionário Priberam2.

Em conclusão, apesar das reservas, não é incorreto o uso de «face a» e de «frente». Mesmo assim, para quem leve a peito essas reservas, existe como alternativa a locução em face de, que não tem tido censura normativa, ou as preposições ante e perante.

P.S. — Os nossos agradecimentos pelas palavras gentis do consulente.

 

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Pergunta:

Tenho lido na imprensa espanhola a palavra cotianidad, umas vezes, e cotidianeidade, outras.

Como seria em português: "quotidianidade" ou "quotidianeidade"?

Confesso que preferiria sempre usar outras expressões mais correntes na nossa língua – tipo, "dia a dia", "normalidade", etc. –, mas fiquei curioso em saber da sua aceitação em português.

Resposta:

Os dicionários consultados1 e os vocabulários ortográficos2 só registam quotidianidade e a variante brasileira cotidianidade.

É possível atestar o uso de "quotidianeidade"  na Internet, mas esta parece forma minoritária, o que, aliado à falta de registo lexicográfico, leva a concluir que quotidianidade é a forma que deve ter este derivado de quotidiano, tal como de humano se faz derivar humanidade. Além disso, observe-se que quotidianidade/cotidianidade é palavra legítima, registada há muitas décadas, como se confirma pela sua entrada no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, que a Academia das Ciências de Lisboa publicou em 1940.

O caso espanhol é diferente, porque o dicionário da Real Academia Espanhola aceita cotidianeidad, embora não lhe dê preferência, remetendo-o para cotidianidad (ver parecer da Fundéu BBVA de 27/04/2020).

 

1 Dicionário Houaiss, Dicionário Michaelis, Dicionário Infopédia, Dicionário Priberam.

2 Consultaram-se o Vocabulário da Língua Portuguesa

Pergunta:

Gostaria de saber se a palavra bem-ensinado se escreve com hífen e mal ensinado se escreve sem hífen, e, se assim for, qual a justificação.

Obrigado.

Resposta:

Escreve-se bem-ensinado e mal-ensinado, se se tratar de adjetivos.

A hifenização de compostos formados com os advérbios bem e mal ocorre geralmente antes de vogal, embora a escrita de bem nessas palavras possa depender também da tradição dicionarística1. No caso em questão, quando se fala em usos exclusivamente adjetivais, verifica-se que os dicionários e os vocabulários ortográficos registam o hífen: bem-ensinado, mal-ensinado. Refira-se, aliás, que se trata de grafias já com, pelo menos, oito décadas, como se pode pode confirmar pelo seu registo no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa de 1940, ou no Vocabulário da Língua Portuguesa (1966) de Rebelo Gonçalves, autor que sublinha que bem-ensinado e mal-ensinado se usam como adjetivos e são sinónimos, respetivamante, de bem-criado e malcriado. A ortografia atualmente em vigor não alterou a escrita destas palavras.

Note-se, porém, que não é impossível a ocorrência de «bem ensinado» e «mal ensinado», conforme também assinalava Rebelo Gonçalves ao advertir que os adjetivos não deviam ser confundidos com a associação pontual dos advérbios bem e mal com o particípio passado ensinado.. É o que acontece com a voz passiva de ensinar: «a matéria foi bem/mal ensinada», «os jovens foram bem/mal ensinados».

É...

Pergunta:

Na frase «olá a todos», qual é a função sintática de «a todos»?

Neste caso, devo ou não colocar uma vírgula entre a interjeição e os restantes elementos?

Resposta:

A expressão é uma forma abreviada (elipse) de «digo olá a todos», em que «a todos» é complemento indireto. Não há, portanto, lugar para uma vírgula na frase em questão.