Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

«Informação é caminho para empoderar o paciente», li há dias num jornal digital brasileiro. Gostava de saber como se formou este "palavrão" ora tão usado no chamado "economês".

Muito obrigado.

Resposta:

O aportuguesamento de empowerment já com conta com cerca duas décadas de uso, pelo menos, tendo em conta o registo do dicionário da Academia das Ciências de Lisboa, de 2001 (ver Textos relacionados, nesta página, à direita). A palavra, que significa genericamente «obtenção, aumento ou fortalecimento de poder»1, é uma adaptação correta, pois segue o mesmo modelo que possibilita a derivação de apoderamento ou apoderação com base no radical apodera-, do verbo apoderar (cf. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa). Este verbo forma-se, por sua vez, por adjunção simultânea (parassíntese) de a- e -ar: a- + poder- + -ar; e o mesmo sucede com empoderar, ainda que a génese tenha motivação no inglês to empower: em- + poder- + -ar.

O verbo empoderar, que, como se viu, está bem formado, legitima, portanto, a formação do vocábulo empoderamento, o qual, se há alguns anos era um neologismo considerado com reservas, hoje é aceitável, ocorrendo não só no "economês", e não como mero elemento da gíria usada entre economistas, mas também na linguagem especializada das ciências sociais.

Mesmo assim, querendo o verbo e o nome em apreço substituídos por palavras com maior tradição no português ou menos vinculadas a anglicismos de vária ordem, quem pesquise, por exemplo, nas páginas de tradução do

Pergunta:

Sobre a pandemia da covid-19 e alguma informação não confirmada pelos especialistas, tenho lido e ouvido – nomeadamente nas conferências de imprensa diária da Direção-Geral da Saúde – a expressão «evidência científica» ou «evidência clinica». Por exemplo:

«Segundo a Autoridade Nacional do Medicamento (Infarmed), a Organização Mundial da Saúde promoveu um ensaio clínico para alcançar evidência científica sobre algumas das opções de tratamento e cuja implementação reúne maior consenso junto da comunidade médica e grupos científicos especializado.»

«A diretora-geral da Saúde afirmou (...) que não há evidência científica de que as desinfeções de vias e espaços públicos sejam eficazes contra o contágio pelo novo coronavírus.»

Não se tratará este modismo um decalque do inglês evidence («There is no scientific evidence to suggest that underwater births are dangerous»)?

Em português sempre se disse e escreveu prova (ou «comprovação»)... cientifica – e nos mais variados domínios. Por exemplo:

«7 provas científicas de que o aquecimento global existe»

«A Prova Científica da Existência de Deus», etc., etc.

Tenho ou não razão?

Muito obrigado.

Resposta:

Do ponto de vista das tradições e padrões de uso do português culto, não se recomendam o uso de evidência como sinónimo de prova, nem a substituição deste por aquele, como, aliás, se confirma pelos exemplos facultados pelo consulente. Trata-se de um anglicismo semântico; ou seja, a (enganadora) semelhança da palavra portuguesa com a inglesa evidence, que, entre vários significados, abrange os de «prova» e «demonstração», pode ter motivado  essa extensão semântica de evidência, por exemplo, em traduções menos cuidadas.

Numa perspetiva comparativa, sem deixar de ser prescritiva, é de assinalar que este caso de empréstimo semântico do inglês replica o que já se verificou noutras duas línguas românicas, por exemplo em espanhol e francês. Com efeito, a Fundéu-BBVA desaconselha o emprego genérico do espanhol evidencia, no sentido de «prueba» («prova») num parecer de 16/06/2015. Também em francês se não aprova o uso anglicizante de évidence, como preuve («prova»), conforme a recomendação da Banque de Dépannage Linguistique do Office Québécois de la Langue Française.

Mas, voltando ao caso português, nota-se que evidência, num sentido próximo do de «prova», aparecerá em A Relíquia, de Eça de Queirós (1845-1900):

(1) «Duvidava eu? Queria uma evidência? Que foss...

Pergunta:

Napoleão Mendes de Almeida (1911-1999) diz no Dicionário de Questões Vernáculas que o verbo apiedar-se deve conjugar-se, nas formas rizotônicas, como: «eu me apiado», «tu te apiadas», «ele se apiada» – e assim vai.

É correto conjugá-lo assim, ou é algo excêntrico desse estudioso?

Resposta:

É uma especificidade brasileira,que vem assim descrita por Napoleão Mendes de Almeida na sua Gramática Metódica da Língua Portuguesa (São Paulo, Edição Saraiva, 1961, p. 232; mantém-se a ortografia original)1:

«Deriva êste verbo de piedade, palavra que os nossos caboclos errôneamente pronunciam piadade. Se êsse a constitui êrro no substantivo, deve aparecer no verbo apiedar-se tôdas as vêzes em que o acento recai no tema do verbo. ou seja, nas formas rizotônicas: Eu me apiado, tu te apiadas, êle se apiada. êles se apiadam; que eu me apiade, que tu te apiades, que êle se apiade. que êles se apiadem; apiada-te tu.

Nas demais formas, o verbo deverá trazer e, visto cair o acento na desinência : nós nos apiedamos, vós vos apiedais; que nós nos apiedemos, que vós vos apiedeis; eu me apiedei etc.; eu me apiedarei etc.»

Este preceito não é de aplicação forçosa2. Com efeito, o Dicionário Houaiss observa o seguinte sobre os verbos terminados em -edar, nos quais inclui essa idiossincrasia de apiedar:

«os verbos da língua com esta terminação têm o -e- aberto nas formas rizotônicas: alamedo, alevedas, almoeda, amoedam, aquede, arredes, arremede, azedem; o verbo apiedar (e

Pergunta:

Obrigada desde já pelas muitas e importantes respostas que nos têm dado ao longo destes muitos anos.

Hoje a minha pergunta tem a ver com a grafia de nomes de espécies zoológicas que incluam apelidos de cientistas que as descobriram e se esse apelido se escreve com maiúscula ou minúscula. Apesar das muitas pesquisas que fiz, não consegui encontrar uma explicação clara.

O dicionário online da Porto Editora grafa os exemplos abaixo com minúscula. Mas há muitas referências da especialidade que as grafam com maiúscula.

Se houver regra para isto, podem, por favor, explicar? E a regra, se existir, é diferente pré e pós-acordo ortográfico? E, se assim for, qual a forma certa para cada um dos acordos?

Cuvier’s beaked whale – "baleia-de-bico-de-Cuvier" ou "baleia-de-bico-de-cuvier", sendo que Cuvier provém do nome Georges Cuvier (1769-1832, anatomista francês?

Bryde's whale – "baleia-de-Bryde" ou "baleia-de-bryde", sendo que Bryde provém do nome Johan Bryde (1858-1925), cônsul norueguês?

Obrigada pela resposta.

Resposta:

Agradecem-se as palavras de apreço da consulente.

Os nomes zoológicos e botânicos compostos escrevem-se com hífenes, e os nomes próprios neles incluídos grafam-se com minúscula inicial:

(1) baleia-de-bico-de-cuvier ou baleia-bicuda-de-cuvier1

(2) baleia-de-bryde2

Estas grafias são válidas tanto à luz do atual acordo como no âmbito da norma anterior (a de 1945). No entanto, há uma diferença quanto às regras donde decorrem:

– Com efeito, na atual norma, que é a do Acordo Ortográfico de 1990, não se explicita uma regra, mas da leitura do n.º 3 da Base XV, que determina a hifenização de compostos que denotam espécies botânicas e zoológicas, depreende-se que tais nomes próprios se escrevem com inicial minúscula, porque a exemplificação inclui dois desses casos: bênção-de-deus, fava-de-santo-inácio.

– Na norma de 1945, em vigorou em Portugal até 2015, não se declarava que, com compostos deste tipo, era obrigatório o hífen, parecendo assim que se abria a possibilidade de alguns nomes zoológicos e botânicos se escreverem sem hífen e, portanto, poderem incluir nomes próprios com maiúscula. Contudo, o texto da norma de 1945, inclui exemplos como erva-de-santa-maria, rainha-cláudia e rosa-do-japão, os quais, além de hifenizados, exibem nomes próprios com minúscula inicial.

Em suma, atualmente os nomes compostos que denotam espécies zoológicas e botânicas escre...

Pergunta:

Começa a surgir, cada vez mais, o verbo to upcycle (e os deverbais upcycling e upcycled) que, segundo o Cambridge Advanced Learner's Dictionary & Thesaurus (© Cambridge University Press), significa «to make new furniture, objects, etc. out of old or used things or waste material» (sendo principalmente este último traço, a reutilização de "resíduos/subprodutos" para algo artístico, aquilo que diferencia este conceito do de reciclar).

Este neologismo é traduzido, em espanhol, como suprarreciclar (e, respetivamente, suprarreciclaje e suprarreciclado).

Em português, também poderia ser adequada a tradução de to upcycle/upcycling/upcycled como “suprarreciclar”/“suprarreciclagem”/“suprarreciclado”, respetivamente?

Agradeço, desde já, a vossa resposta.

Resposta:

As formas "suprarreciclar" e "suprarreciclagem" são possíveis em português, mas não têm uso, por enquanto.

Na verdade, o que é mais corrente como equivalente a upcycle e upcycling é recuperar e recuperação (ver, por exemplo, aqui). É de notar que uma situação inversa parece confirmar a adequação de recuperar, visto que este verbo é traduzido por upcycle (ver aqui).

Não obstante, a expressão que parece fixar-se no uso é a perífrase «reutilização criativa», que ocorre na página da Quercus e também figura no artigo que a Wikipédia dedica a esta prática.