Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Existe em Setúbal um antigo bairro com a denominação de "Tróino". Dado que tenho visto o termo grafado umas vezes como "Tróino" e outras como "Troino" agradeço informação sobre a grafia correcta.

Obrigado.

Resposta:

Escreve-se Troino, pelo menos, de acordo com a norma vigente.

Antes de 2015, é possível que se escrevesse "Tróino", para indicar a abertura do ditongo, tal como se verifica na pronúncia, mas, mesmo nessa época, a grafia com acento não era consensual. Com efeito, Troino era já a forma que José Pedro Machado (1914-2005) registava na edição de 2003 do seu Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa, antes, portanto, da entrada em vigor do acordo ortográfico vigente.Também no Guia de Portugal, coordenado por Raul Proença e publicado em 1924 (reedição da Fundação Calouste Gulbenkian, 1988, p. 662), a grafia empregada não apresenta acento gráfico: «Estamos em pleno bairro do Troino, habitado por pescadores (praia de banhos).»

Segundo ainda José Pedro Machado (op. cit.), é obscura a etimologia de Troino – «o Troino», ainda que na Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira se sugira uma relação com Troia, topónimo que designa a península integrante do tramo final da margem sul do estuário do Sado.

Pergunta:

Como se diz o plural de dorminhoco? Abre-se o o, ou não?

Obrigada

Resposta:

No plural, recomenda-se a pronúncia com o fechado, tendo em conta o exemplo de barroco/barrocos: dorminh[ô]cos.1

No entanto, há oscilações na pronúncia da terminação -oco e das variações no plural e no feminino – passaroco, com "ô", mas pipoca, com "ó" –, o que explica de algum modo que haja dicionários que registam o plural de dorminhocos com o "ó" aberto (p. ex., o dicionário da Academia das Ciências de Lisboa e o Diconário Priberam). Por outras palavras, na prática, a forma com o aberto tónico não é um erro, e aceitam-se as duas maneiras de pronunciar dorminhocos.

Quanto ao feminino, a situação é semelhante à do plural. Pode manter-se o fechado na sílaba tónica – dorminh[ô]ca –, como acontece com o feminino de barroco, que é barr[ô]ca («arte barr[ô]ca", e não «arte barr[ó]ca"). No entanto, há dicionários (p. ex., o já referido dicionário da Academia de Ciências de Lisboa) que aceitam o feminino com o aberto": dorminh[ó]ca2.

 

1 O Vocabulário da Língua Portuguesa (1966), Rebelo Gonçalves associa a dorminhocos a indicação de um o fechado tónico.

2 Para as formas do género feminino, Rebelo Gonçalves (op. cit.) regista as duas pronúncias, com o fechado e o

Pergunta:

Considerando que o termo religião (religio) traduz um conceito, parece-me gramaticalmente erróneo utiliza-lo no plural ("religiões").

Não será assim ?

Resposta:

Do ponto de vista estritamente linguístico, considera-se:

– por um lado, a religião como fenómeno do comportamento humano, e, neste caso, emprega-se o nome comum religião no singular;

– por outro. como sistema organizado de crenças, muitas vezes associado a um aparelho institucional complexo (p. ex. a Igreja Católica, o Islão), e, nesta ótica, pode usar-se a palavra também no plural – religiões: «as religiões do Livro», «a história das religiões».

Pergunta:

Na sequência da implementação do Acordo Ortográfico, gostaria de saber como devem ser classificados os nomes referentes aos meses e estações do ano em contexto escolar. Uma vez que se escrevem com minúscula, nomes comuns?

Já li explicações que referem que devem continuar a considerar-se nomes próprios. Neste caso, como o explicar a miúdos do 1.°, 2.° e, até, 3.° ciclos?

Pessoalmente, passei a evitar a classificação destes nomes, mas recentemente tive de ajudar o meu filho a resolver um exercício e deparei-me com este problema. Ele frequenta o 3. ° ano e o exercício enviado apresentava a ortografia anterior à implementação do AO, ou seja, estes nomes surgiam com maiúscula, o que me levou a uma explicação acrescida, tendo optado pela classificação de nomes comuns.

Aguardo o vosso precioso parecer.

Resposta:

A questão levantada é a mesma que já poderia formular-se antes da aplicação do Acordo Ortográfico perante os nomes dos dias da semana, que não eram classificados como nomes próprios e não conheceram tratamento especial em contexto escolar.

Não é consensual o estatuto onomástico dos nomes do calendário – os nomes cronológicos ou cronónimos –, como se aponta na Gramática do Português da Fundação Calouste Gulbenkian (2003, p. 1008), obra que, apesar disso, os inclui entre os nomes próprios. Mas deve observar-se que, muito antes, já Gonçalves Viana (1840-1914), no seu Vocabulário Ortográfico (1914, p. 32), que preceituava a maiúscula inicial nos nomes dos meses quando este figurassem em datas, escrevia, por exemplo, abril (idem, p. 44), não evitando a inferência de aos nomes dos meses abrir-se a possibilidade de se grafarem com minúsculas iniciais noutros contextos.

O Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa de 1940, da Academia das Ciências de Lisboa, registava os nomes dos meses quer na secção que lista o vocabulário comum quer na secção do vocabulário onomástico, observando que abril, fevereiro ou junho se escreviam com minúsculas iniciais e eram nomes comuns quando «não indicam propriamente uma data». Esta classificação desaparece mais tarde em 1966, quando Rebelo Gonçalves (1907-1982) publicou o seu

Pergunta:

Em recente entrevista ao diretor da Polícia Judiciária, tropecei com esta palavra da área do cibercrime (formada do anglicismo hacker, pirata informático», em português): "hacktivismo».

Transcrevo a frase: «Ainda recentemente detivemos um jovem, da área do hacktivismo, que atacou inúmeras estruturas do Estado e multinacionais. Temos feito um conjunto de trabalhos em que estão em causa valores importantes da própria democracia, do Estado, que se fazem e não se publicitam, face aos interesses em causa. Por vezes, a prevenção de certos tipos de criminalidade obriga a remetermo-nos ao silêncio, deixando que a Justiça atue nos seus tempos. Nós somos uma polícia pequena, mas que tem de ser uma polícia com excelência. (...)»

A minha dúvida: é aceitável um neologismo destes?

Muito obrigado.

Resposta:

Do ponto de vista estritamente normativo, a resposta mais previsível é considerar a forma "hacktivismo" um neologismo inaceitável. Acontece, porém, que o vocábulo em causa denomina uma nova realidade, a da pirataria informática posta ao serviço de certas causas políticas, o que pode constituir razão suficiente para uma avaliação mais demorada.

Trata-se do aportuguesamento de um empréstimo proveniente do inglês, a amálgama hacktivism1, também escrita hactivism, resultado da junção de hack, «acutilar; aceder  ilegalmente» (ou da truncação de hacker, «pirata informático; ciberpirata; pirata eletrónico»)2, e activism, o mesmo que «ativismo, militância». É, portanto, um item lexical que ocorre em português muito provavelmente devido ao facto de este novo tipo de intervenção política, de protesto, ter sido identificado num universo de utilização da língua inglesa como idioma franco da informática, levando assim a cunhar e a projetar a denominação. Como é de calcular, no contexto das línguas românicas, o português não está isolado na adoção do termo: para o espanhol, a Fundéu BBVA menciona hacktivismo no artigo que dedicou em 2017 a hacker; e o dicionário de italiano Treccani atesta desde 2012 o termo hacktivista, que legitima nessa língua a forma hacktivismo.

Quanto à introduçã...