Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Donde surgiu a forma «tomara que...»?

Vi o uso «tomaras tu poder...», uso este que não conhecia desta forma.

Geralmente compara-se este tempo com sua forma composta, o que é bem mais fácil de entender.

«Tomara que possas» é a forma contemporânea de «tomaras tu poder»?

Resposta:

Considera-se geralmente que tomara é a 3.ª pessoa do singular do pretérito mais-que-perfeito do indicativo verbo tomar.

Contudo, não é de excluir que tomara, como fórmula impessoal, possa ter origem árabe, em atámm alláh, forma do árabe hispânico (andalusi) que significa «cumpra Deus». Nesta perspetiva, trata-se de um caso curioso de convergência de uma fórmula arábica com um verbo românico não originário do latim, mas talvez do germânico2.

É de supor o uso impessoal seguido de oração finita («tomara que possas...») ou de oração de infinitivo («tomara tu poderes...») seja anterior ao uso pessoal de tomara («tomaras tu poder...». Com efeito, uma consulta da secção histórica do Corpus do Português não faculta claros exemplos da flexão de tomara antes do século XIX.

1 Cf. Federico Corriente, Diccionario de Arabismos (Madrid, Editorial Gredos, 2003, s.v. tomara).

2 Segundo a nota etimológica que o Dicionário Houaiss (2001) dedica a tomar, é este um verbo de «origem obscura», que «[os dicionários] Michaelis e Caldas Aulete derivam de um [verbo] saxão tomian» (o saxão constitui um dos sub-ramos do ramo germânico da família indo-europeia). Outra visão têm 

Pergunta:

Gostaria de saber qual é a origem da palavra "morçoas" que deu nome a um lugar da vila de Alhos Vedros.

Obrigada.

Resposta:

Nas fontes consultadas para esta resposta, não foi possível achar informação clara sobre a etimologia do topónimo em questão1.

Mesmo assim, sugere-se que Morçoas seja uma deturpação de "morouçoas", feminino plural de um eventual aumentativo de morouço. Assinale-se que por morouço se entende «monte de pedras ou de porcaria» (cf. Dicionário Infopédia da Língua  Portuguesa), noção que não será referencialmente implausível em Alhos Vedros, localidade marcada quer pela pesca quer mais tarde pela indústria: o topónimo pode, portanto, fazer alusão à acumulação dos detritos resultantes de tais atividades.

1 Não consta do Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa (2003), de José Pedro Machado.

Pergunta:

No Extremo Oriente existe uma ilha, a ilha de Takeshima. O nome assim escrito, como se vê, não está aportuguesado.

Procurei a natural e possível forma “Taquexima” no Google, e, embora em nenhum texto recente estivesse presente essa forma, surpreendentemente a encontrei num escrito chamado «Cartas qve os padres e irmãos da Companhia de Iesus escreuerão dos Reynos de Iapão & China aos da mesma Companhia da India, & Europa des do anno de 1549. até o de 1580».

Será passível de consideração essa grafia aportuguesada, mesmo que antiquíssima?

Será que não se usou noutros textos fora dos meios virtuais?

Resposta:

A grafia Taquexima pode e deve ser considerada.

Observa-se a tendência para usar a grafia internacional, geralmente de procedência inglesa. Mesmo assim, no uso de topónimos japoneses podem considerar-se três situações:

1. Há formas de topónimos japoneses que estão aportuguesadas e se usam sem hesitação: Tóquio, Nagasáqui, Osaca, Quioto.

2. Há outras que têm aportuguesamento tradicional que, por vezes, é preterido pela forma internacional: Hiroxima (melhor que Hiroshima).

3. Mas há outros nomes que se usam com a grafia internacional: Honshu

O caso de Taquexima insere-se em 2. Como se trata de um nome pouco usado – apesar de se tratar de território disputado, e, portanto, ser suscetível de atrair a atenção mediática em português –, não parece haver resistência à forma portuguesa e, portanto, nada há que contrarie o seu uso.

Pergunta:

O Dicionário Houaiss data a palavra lusíada de 1530, ou seja, quarenta anos de Luís de Camões ter publicado Os Lusíadas.

Que uso teve a palavra até à publicação da epopeia?

O mesmo dicionário data a palavra lusitano de 1572, a data de Os Lusíadas. Parece estranho que lusíada tenha surgido antes de lusitano. Há um explicação para tal?

Resposta:

Encontra-se muita informação sobre a criação e uso de lusíada no artigo que lhe dedica Virgínia Soares Pereira no Dicionário de Luís de Camões (Editorial Caminho, 2011), coordenado por Vítor Aguiar e Silva.

Nesse texto refere-se que o termo foi criado pelo humanista português André de Resende (c.1500–1573), num poema latino de 1531, no contexto da literatura neolatina, portanto, durante o movimento de recuperação do latim clássico que caracterizou o Humanismo e a época do Renascimento. O termo volta a ser utilizado por Resende em 1534, ainda em latim e sempre como termo literário, até Camões o ter empregado como título do seu poema épico.

Quanto a lusitano, não é de admirar que o seu uso em português seja surpreendentemente tardio, porque se trata de uma palavra erudita. O português medieval parece desconhecê-lo. Contudo, segundo o mesmo artigo de Virgínia Soares Pereira, a palavra lusitanus, em latim, figura num texto português de 1545, também de André de Resende. Não é, portanto, implausível que o termo já tivesse adaptação ao português em meados do século XVI.

Acrescente-se que lusíada é um nome e adjetivo derivado do antropónimo Luso, «personagem mitológico, filho ou descendente de 

Pergunta:

No Brasil, pelo menos, se diz muito «Ele quebrou os copos TUDO», mas também «Ele quebrou TODOS os copos».

Por que, estando o pronome no fim, há a mudança de um por outro?

É errada a primeira alternativa?

Resposta:

A primeira frase está errada à luz da norma culta, porque é necessário que o quantificador todo , no sentido de «inteiro», concorde com o nome que determina na frase em questão: «quebrou os copos todos».

Contudo, é possível examinar «quebrou os copos tudo» no âmbito dos estudos de variação linguística. Ainda assim, nas fontes brasileiras consultadas1, não foi possível identificar estudos ou comentários especializados que mencionem o uso em apreço, nem mesmo para o assinalar e censurar como erro. Não há, portanto, maneira de aqui atestar este emprego em trabalhos da linguística descritiva, muito embora seja tentador supor que se trata da tendência para evitar a redundância de marcas do plural na fala popular brasileira.

 

1 Cf. Evanildo Bechara, Moderna Gramática Portuguesa (Nova Fronteira, 2002), Maria Helena Moura Neves, Guia do Uso do Português: confrontando regras e usos (São Paulo, Ed. Unesp, 2003) e Napoleão Mendes de AlmeidaDicionário de Questões Vernáculas (Ática, 2003).