Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Em um mesmo jornal de grande circulação, no Brasil, tenho observado diferentes grafias para «imitar ou descrever alguém que reclama demais» ou para «satirizar e tirar sarro de reclamações ou brigas desnecessárias, servindo como argumento para as pessoas pararem de falar».

Afinal, que grafia devemos adotar na escrita? “Mimimi”, “mi mi mi” ou “mi-mi-mi”?

Eis os contextos:

a) “Nós temos que enfrentar os nossos problemas, chega de frescura e de mimimi. Vão ficar chorando até quando? Temos de enfrentar os problemas. Respeitar, obviamente, os mais idosos, aqueles que têm doenças, comorbidades, mas onde vai parar o Brasil se nós pararmos?”, questionou o presidente em São Simão (GO).” (Marcelo Toledo e Luís Cláudio, Saúde, Folha de São Paulo, 04/03/2021);

b) “Finalmente o futebol está de volta nesta quarta-feira! Depois de quase um mês de muito blá-blá-blá, mi mi mi e jogos horripilantes, vamos ter três jogos de verdade hoje. Palmeiras x Inter, Grêmio x Bahia, Athletico x Flamengo abrem as quartas de final da Copa do Brasil. Felizmente acabou a Copa América, uma das piores edições da história, que não deixará saudades.” (Ágora São Paulo, Esporte, Folha de São Paulo, 10/07/2019); e

c) “Era um papel bastante distanciado, porque o Estado se comporta como reflexo da sociedade que o compõe, negando esse processo de morte. Desde novembro de 2018, temos uma normativa sobre os cuidados paliativos no SUS. Está aprovado, reconhecido. Precisamos agora ter quem faça. Temos que mostrar ao que viemos, sem mi-mi-mi.” (Paulo Markun, Colunas e Blogs, Folha de São Paulo, 21/08/2019)

Resposta:

Trata-se de uma expressão coloquial de cariz onomatopaico (imita um determinado som ou ruído), que imita depreciativamente o queixume de alguém.

Nestes casos, muito parece depender da tradição de registo dicionarístico, a qual, no caso vertente, parece escassa ou nula, a não ser em certos dicionários colaborativos disponíveis na Internet, como o Dicionário Informal. Curiosamente, "mimimi" também encontra registo no dicionário galego-português de Isaac Estraviz (nesta fonte, também se escreve "blablablá"). Contudo, tendo em conta os registos de blá-blá-blá1com hífen, tem cabimento propor a grafia mi-mi-mi.

Em suma, é palavra que ainda não estabilizou ortograficamente, e, sendo assim, é possível, por enquanto, escrevê-la de diferentes maneiras. Não obstante, sugere-se aqui que mi-mi-mi sobressai como boa opção, pelo motivo apontado.

 

1 Consultaram-se  o vocabulário ortográfico da Academia Brasileira de Letras, o Dicionário Infopédia  e o Dicionário Michaelis.

Pergunta:

A expressão «Antigos Paços do Concelho» deve ser escrita com maiúsculas ou minúsculas?

Obrigada.

Resposta:

Como geralmente é expressão referente a um edifício histórico importante, escreve-se com maiúsculas iniciais: Paços do Concelho. Se a expressão for modificada por antigos (ou outro adjetivo), não se impõe que este comece por maiúscula, embora possa acontecer que a expressão assim adjetivada se torne o nome por que se identifica determinado edifício monumental1.

Note-se, porém, que a locução nominal «paços do concelho», que significa «edifício onde reúne a vereação e onde funcionam os respetivos serviços administrativos» (dicionário da Academia das Ciências de Lisboa), também se regista com minúsculas iniciais, como denominação de qualquer edifício com as referidas funções.

 

1 Rebelo Gonçalves, no seu Vocabulário da Língua Portuguesa (1966), regista Paços do Concelho, com maiúscula inicial. Este autor já tinha antes feito o mesmo registo no Tratado de Ortografia da Língua Portuguesa (1947,p. 331/332), incluindo a expressão entre outras que se grafam com maiúsculas iniciais por constituírem «designações de edifícios ou parte deles, de construções arquitectónicas diversas, de moradias, de propriedades rústicas, ou em quaisquer designações similares dessas».

Pergunta:

A minha questão tem a ver com a utilização do hífen na grafia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990, ou seja, com as regras aplicáveis na vigência do acordo de 1945, ou decorrentes do mesmo ou porque já existiam anteriormente.

Sei que o prefixo semi, escrito com esta grafia só era precedido de hífen se as palavras principiais começassem por h, i, r ou s. E quanto ao prefixo tele?

Com o acordo de 1990, nos últimos dois casos não existe hífen, e o r e o s são dobrados. Mas como era anteriormente? Aplicam-se as regras do prefixo semi? Um texto que não segue o acordo deve escrever, por exemplo "tele-radiestesia" e "tele-receptor"?

Já encontrei vários artigos vossos, mas todos eles se centravam na perspectiva do acordo de 1990. 

Obrigado.

Resposta:

No contexto da anterior norma – o chamado acordo de 1945 –, o prefixo tele agregava-se ao elemento seguinte sem hífen, com duplicação de r e s (telerradigrafia, telessismógrafo) e eventuais supressão de h e elisão vocálica (casos estes que não se documentam nas fontes relativas à referida norma).

Refira-se que, no Tratado de Ortografia da Língua Portuguesa (1947, pp. 252/253), de Rebelo Gonçalves, a forma tele- figurava classificada como prefixo que nunca se escreve seguido de hífen, portanto entre os prefixos que se uniam completamente aos elementos imediatos. A mesma fonte acrescentava em nota (ibidem,n. 8):

«Com esta união, ou os elementos posteriores aos prefixos ficam intactos, ou se dão alterações interiores: supressão do h, duplicação do r ou s, etc.

Preveja-se também [...] o caso de um prefixo não aparecer  na forma plena, por terminar em vogal e esta se elidir ante uma vogal do elemento imediato: endartrite [endo- + artrite],etc.»

Atualmente, a escrita de derivados com o prefixo tele- está sujeita à Base XVI, 1, do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

Pergunta:

Conquanto não pertença ao paradigma verbal normativo, o particípio presente segue em uso regular na fala e escrita, em neologismos espontâneos, geralmente com final -ante, inclusive com função verbal.

No entanto, para verbos cuja vogal temática é o i, concorrem as possibilidades -iente e -inte. Portanto, qual alternativa seria a mais adequada?:

«Todos os "saintes" devem deixar o crachá à mesa.»

«Todos os "saientes" devem deixar o crachá à mesa.»

«Todos os "salientes" (forma latina) devem deixar o crachá à mesa.»

Quais as regras aplicáveis a essa classe de adjetivos de base verbal da língua portuguesa?

Resposta:

O sufixo  -nte, que é muito produtivo na produção de adjetivos deverbais (derivados de temas verbais), remonta ao sufixo flexional do particípio presente latino. Contudo, a sua ativação frequente, na formação de novos derivados, não é indicativa de que exista um particípio presente em português.

No caso de derivados sufixados por -nte, a possibilidade correta com temas de verbos da 3.ª conjugação (acabada em -ir) é com a terminação -inte ou -ente:

a) ouvi- (ouvir)> ouvinte; pedi- (pedir) > pedinte; sai- (sair) > sainte; segui- (seguir) > seguinte;

b) agi- (agir) > agente; dormi- (dormir) > dormente; referi (referir) > referente; servi- (servir) > servente.1

A terminação -iente só  figura em adjetivos resultantes da adaptação de formas latinas: convenie- (do latim convenire) > conveniente; incipie- (do latim incipere) > incipientesali- (do latim salire) > saliente.

Note-se que as formas acabadas em -iente só se aceitam se foram transpostas do latim clássico diretamente, por via  erudita, para o português. Não é, portanto, aceitável a forma "saiente", que mistura a morfologia do português contemporâneo (sair) com a configuração latina de transmissão culta (-iente).

Por último, em relação às frases apresentada...

Pergunta:

De acordo com artigo de João Veloso, da Universidade do Porto, “The English R coming! The never ending story of Portuguese rhotics” (2015), como parte dum grande processo de mudança na pronúncia dos erres, o erre de palavras como carta, em Portugal, já poderia ser pronunciado como retroflexo.

Para mim, é grande novidade, pois esperava existir tal som somente no português brasileiro. Segundo ele, até há pouco tempo não se documentava essa pronúncia em Portugal, mas alguns estudos recentes e a sua própria observação linguística de jovens escolarizados do Porto demonstram que essa pronúncia cresce a cada dia. «Parece ser mais frequente entre falantes mulheres, jovens e escolarizadas do que entre homens», diz ele.

Que visão tem o Ciberdúvidas a respeito disso?

Resposta:

É uma novidade bastante audível entre os jovens falantes de português de Portugal, em especial os do Norte, se se atender ao estudo do linguista português João Veloso, referido pelo consulente.

O r retroflexo é uma consoante «(...) cuja emissão exige a elevação da ponta da língua em direção à abóbada palatina, provocando um tipo de articulação ápico-pré-palatal; consoante cacuminal, consoante cerebral (p.ex., o chamado r caipira do português do Brasil, ou o r do inglês em red, right)».

Esta articulação ocorre como realização da vibrante simples /ɾ/, que figura em posição intervocálica – cera – e a fechar sílaba – porta, chegar

Está por esclarecer o aparecimento desta pronúncia, não podendo, para já,  atribuir-se nem à influência de certos dialetos brasileiros, nem ao impacto do inglês. Trata-se de um fenómeno detetado por especialistas, mas não pela generalidade dos falantes. Para elaboração desta resposta, não foi possível achar nenhum registo de juízo normativo a respeito desta pronúncia.