Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Se, de belo, vem beleza, por que de natural, não vem "naturaleza"?

Qual o real motivo da supressão de duas das letras do meio? Em espanhol, é naturaleza!

Fiz a busca no Google, até pelo site de vocês, mas a resposta não me apareceu!

Obrigado.

Resposta:

A palavra tem a atual configuração por razões históricas.

De acordo com uma nota etimológica do Dicionário Houaiss:

«natura + -eza; contra os substantivos portugueses em -eza (radical adjetival + -eza, tipo beleza, certeza, firmeza, pobreza, riqueza, tristeza etc.), natureza tem formação não canônica, tal como o português naturança "o mesmo que natura ou naturalidade em Mosteiro", segundo Morais Silva, já que não se pode presumir provirem do português naturaleza, nem do verbo naturar, respectivamente.»

No entanto, dado que se atesta documentalmente desde o século XIV quer em textos portugueses quer em textos galegos, poderia supor-se que natureza fosse o resultado de naturaleza (<natural +-eza) por alteração fonética – concretamente, pela queda (síncope) do -l- intervocálico,fenómeno característico da língua até ao século XII: naturaleza > *naturaeza > *natureeza > natureza. A verdade é que não parece haver indícios de que tenha sido assim, razão por que a etimologia indicada pelo Dicionário Houaiss, que é, de resto, a de outras fontes, constitui a proposta mais aceite.

Pergunta:

Na comunidade das ciências naturais, ciências humanas, ciências sociais e noutras áreas do conhecimento humano subsiste a dúvida (e a discussão) sobre se se deve adotar "Antropoceno" ou "Antropocénico" como o vocábulo adequado para designar a nova época geológica e cultural em que teremos entrado em meados do século XX.

O conceito de Antropoceno/Antropocénico é transversal a todas as áreas do conhecimento humano e traduz um tempo a partir do qual a humanidade se tornou uma força telúrica capaz de colocar em causa a sua própria existência, bem como a vida tal como a conhecemos, ao ponto de poder causar a sexta extinção em massa do planeta. Sendo um conceito não apenas geológico, mas também cultural, gostaria de saber a opinião dos linguistas do Ciberdúvidas sobre como devemos apelidar este novo tempo: Antropoceno ou Antropocénico?

Agradeço antecipadamente a vossa resposta e aproveito para felicitar o vosso trabalho, altamente meritório para a língua portuguesa.

Resposta:

Formas relativas a termos usados na periodização geológica, como Miocénico e Pliocénico, estão corretas e, usadas como nomes, são equivalentes, respetivamente, a Mioceno e Plioceno. Infere-se, portanto, que Antropoceno e Antropocénico, que ocorrem no mesmo tipo de periodização, são também ambas formas corretas e sinónimas, como aliás o seu registo em dicionários recentes confirma.

As formas Antropoceno e Antropocénico correspondem a nomes próprios sinónimos que denominam o «período mais recente na história da Terra, em que as atividades humanas começaram a ter um impacto global significativo no clima do planeta e no funcionamento dos seus ecossistemas (nomeadamente desde a década de 1950, altura a partir da qual se verificou um acentuado aumento demográfico e de consumo energético)», conforme a definição do Dicionário Infopédia da Língua Portuguesa. O Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa da Academia das Ciências de Lisboa (VOLP-ACL) igualmente regista os dois termos1. Quer na Infopédia quer no VOLP-ACL, os termos em apreço são classificados como nomes e adjetivos.

Note-se que os termos relativos à periodização da história geológica2 ocorrem como nomes próprios com maiúscula inicial – p. ex. Mioceno, Miocénico –, mas têm minúscula inicial quando usados adjetivalmente – miocénico, mioceno. O mesmo acontece com os vocábulos em questão: Antropoceno e Antropoc...

Pergunta:

Compreendo a forma de pronunciar certas palavras, quando as mesmas assumem uma forma com silabas adicionais.

Como exemplo refiro: carro e carroça" (lendo-se cárro e cârroça), ou faca e faqueiro (lendo-se fáca e fâqueiro).

Assim sendo, como explicar o caso de raça e racismo, onde as duas palavras são ditas como "ráça" e "rácismo"?

Há alguma regra que possamos considerar para saber quando se abre ou fecha a vogal?

Obrigado.

Resposta:

Trata-se de uma exceção à regra do vocalismo átono do português europeu.

Os casos de carroça e faqueiro são regulares, porque o a aberto das sílabas tónicas das chamadas "palavras primitivas" – carro e faca – passa a a fechado por se encontrar em sílaba átona (isto é, sem acento de intensidade).

No entanto, por razões históricas há várias exceções à regra, como é o caso de racismo, se junta a outras palavras derivadas com -ismo, que mantêm a vogal aberta da palavra primitiva: fascismo, marxismo.

Cf.Cuidado com as vogais (átonas)! + Vogais átonas abertas

Pergunta:

Algumas ocorrências que encontrei de pronomes oblíquos átonos arcaicos:

«Que estais no céu, santificado... Não no disse eu, menina? Seja o vosso nome…» (Almeida Garrett)

«Ele ou é trova, ou latim muito enrevezado, que eu não no entendo.» (Almeida Garrett)

«Via estar todo o Céu determinado / De fazer de Lisboa nova Roma; / Não no pode estorvar, que destinado / Está doutro Poder que tudo doma.» (Camões)

«O favor com que mais se acende o engenho / Não no dá a pátria, não, que está metida…» (Camões)

«Ora sabei, padre Fr. João, que eu bem no supunha, bem no esperava; mas parecia-me impossível, sempre me parecia impossível que viesse a acontecer.» (Eça de Queirós)

«A culpa de se malograrem estes sublimes intentos quem na tem é a sociedade…» (Camilo Castelo Branco)

«Parentes, amigos, nem visitas nenhumas parecia não nas ter.» (Almeida Garrett)

Há alguma explicação para o uso da consoante n antes dos oblíquos átonos?

Muito obrigado!

Resposta:

No português culto e literário, de tradição oitocentista, os pronomes átonos têm a forma -no/-na depois de formas verbais terminadas em nasal:

(1) Compraram um apartamento e venderam-no logo a seguir.

Acontece que no português mais arcaico as formas -no/-na também podiam ocorrer depois do advérbio de negação não, dada a nasalidade:

(2) Havia muitas cerejas no mercado. mas eu não nas quis comprar. [ou seja, no português escrito padrão: «não as quis comprar»]

Este é um fenómeno que ainda sobreviverá entre alguns falantes mais velhos de Portugal, geralmente pouco escolarizados.

No entanto, é uma sobrevivência curiosa com valor histórico, porque aponta para um fenómeno de assimilação que terá ocorrido em tempos recuados, desde a alta Idade Média, no período galego-português, conforme ilustra o seguinte exemplo (o asterisco marca o seu estatuto hipotético):

(3) *non lo quis > non no quis > não no quis

O esquema acima pretende reconstituir a sequência de advérbio de negação, forma arcaica do pronome o e o verbo. O que aconteceu foi o l de lo, que geralmente desaparecia (síncope) depois de formas verbais acabadas em vogal (quero-*lo» > quero-o), ter sido assimilado pelo som nasal de non (mais tarde, a partir de finais do século XIV, nam e não) e ter passado a articular-se também como n: *non lo > non no.

Trata-se de uma explicação que tem de ser histórica e dialetológica, o que também explica que o uso em questão apareça em Camões e depois mais tarde no século XIX como forma de recriar literariamente a fala popular (casos das citações Almeida Garrett, Camilo Castelo B...

Pergunta:

Estava lendo Marília de Dirceu [de Tomás António Gonzaga] e me deparo com este verso:

«O mesmo, que cercou de muro a Tebas.»

Que eu saiba só tem duas regência o verbo em questão:

1) Cercar algo DE.

2) Cercar-se DE.

Gostaria de saber se a regência do verbo é outra (Cercar A algo DE) ou se Tebas é de gênero feminino.

Resposta:

Não convém tomar como exemplo do funcionamento linguístico atual textos com mais de 200 anos. É o caso do verso em questão.

Como é improvável que Tebas, nome próprio do género feminino, se usasse (ou se use) com artigo definido, no exemplo ocorrerá um objeto direto1 preposicionado, tendo a frase por núcleo o nome próprio em apreço. Esta construção era frequente no século XVII e manteve-se com alguma vitalidade no século XVIII, geralmente envolvendo nomes próprios de pessoa, embora também se documente o seu uso com nomes de países, regiões ou cidades que constituam entidades políticas:

(1) «Em Hespanha o insigne Portuguez Viriato, filho de hum pastor, poz em duvida se Hespanha dominaria a Roma, ou Roma a Hespanha, como confessáraõ os mesmos Romanos.» (Antonio de Sousa de Macedo, Eva e Ave ou Maria Triunfante, 1676, ibidem)

2) «Algumas tropas passaram há pouco tempo para Provença e Delfinado, e muitos discursaram que eram disposições para invadir a Castela no caso daquela morte.» (J. Cunha Brochado, Cartas,1707 in Corpus do Português )

Tanto em (1) como em (2),  Roma e Castela, que, tal como hoje, não se fazem acompanhar de artigo definido («vivia em Roma/Castela»), têm associada a preposição a e desempenham a função de objeto direto das respetivas orações («dominaria a Roma» = «dominaria Roma»; «para invadir a Castela» = «para invadir Castela»).

Sendo assim, no verso em questão, «cercou de muros a Tebas», apresenta-se um objeto direto preposicionado ...