Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

O território da Irlanda do Norte deve escrever-se "Ulster" ou "Úlster"? E devemos escrever «livros acerca do Úlster» ou «livros acerca de Úlster» (com ou sem acento)?

Resposta:

Na maioria das fontes1 consultadas para elaboração desta resposta, não se encontra aportuguesamento de Ulster, nome de uma região da ilha da Irlanda que, na sua maior parte, integra o Reino Unido. No entanto, regista-se há já algum tempo a forma Úlster2, que coincide com a forma espanhola Úlster. Este topónimo tem associado o artigo definido: «o Ulster/Úlster».

Sem desconsiderar a forma aportuguesada Úlster, que é aceitável, observe-se que, como se trata de nome estrangeiro, pode manter-se a grafia original e uma pronúncia aproximada, dentro do que a fonologia do português possibilita, tal como acontece com os nomes das outras províncias históricas irlandesas (que ocorrem sem artigo definido): LeinsterMunsterConacht (ou Connaught). 

Por outro lado, a pergunta leva a pensar se não haverá formas portuguesas mais antigas dos nomes destas regiões irlandesas. Com efeito, as relações de Portugal com a Irlanda não terão sido esporádicas, havendo famílias e grupos imigrados como é o caso dos O'Neill. Talvez existam formas vernáculas de topónimos irlandeses que, existentes documentalmente, não vingaram no uso e que estão à espera de recuperação ou, pelo menos, identificação e registo. Não seria isto de admirar, dado haver casos desta natureza com topónimos de outras línguas, por exemplo, o alemão: refira-se, por exemplo, "Estarique" forma portuguesa quatrocentista de Österreich, ou seja, Áustria, ao que parece por via flamenga (cf. J. P. Machado,

Pergunta:

Como pronome interrogativo e sujeito, quem exige sempre um verbo ao singular, ainda que se refira a uma pluralidade (já que pode significar neste caso «que pessoa/que pessoas»), ou esta restrição só se aplica no sentido relativo do pronome?

Por exemplo, no espanhol poderia haver uma frase qual:

¿Quiénes golpean la puerta?

Mas no português, seria possível dizer: «Quem "batem" à porta?» («Que pessoas batem a porta?») ou seria obrigatório estar o verbo no singular («Quem bate à porta?») e então tereremos de entender que se refere a uma pluralidade só pelo contexto?

Muito obrigado pela sua atenção. E está bem se me der uma fonte para ler para que não tinha de escrever demais.

Resposta:

Em português o pronome quem, seja ele interrogativo («Quem é?») ou relativo («Sou eu quem bate à porta»), não tem plural, ou seja, não existe a forma *"quens" (o * indica incorreção). Tampouco se aceita que um verbo associado a quem com a função de sujeito ocorra no plural, mesmo que o plural se interprete como um par ou um grupo de pessoas:

(1) Por pouco, o João, a Rita e o Joaquim não nos visitavam. A minha filha não sabia quem estava a bater à porta e não abriu.

Em espanhol, pelo contrário, como assinala o consulente, a forma quien tem o plural quienes, cujo uso se descreve assim na Nueva Gramática Española (Asociación de Academias de la Lengua Española, 2010, p. 412):

«O relativo quien, assim como o interrogativo e exclamativo quién, têm flexão de número (quienes, quiénes). Este plural estendeu-se em época tardia, razão por que às vezes se regista ainda o singular para referências plurales: "Quién son los que os acompañan" ["Quem são os que vos acompanham"] [...].»

O uso português parece, portanto, conservar uma situação que o espanhol também conheceu em tempos.

Acrescente-se o comentário que Pilar Vázquez Cuesta  e Maria Albertina Mendes da Luz fazem na Gramática da Língua Portuguesa (Edições 70, 1980, p. 507/508; tradução de Gramática...

Pergunta:

Em um mesmo jornal de grande circulação, no Brasil, tenho observado diferentes grafias para «imitar ou descrever alguém que reclama demais» ou para «satirizar e tirar sarro de reclamações ou brigas desnecessárias, servindo como argumento para as pessoas pararem de falar».

Afinal, que grafia devemos adotar na escrita? “Mimimi”, “mi mi mi” ou “mi-mi-mi”?

Eis os contextos:

a) “Nós temos que enfrentar os nossos problemas, chega de frescura e de mimimi. Vão ficar chorando até quando? Temos de enfrentar os problemas. Respeitar, obviamente, os mais idosos, aqueles que têm doenças, comorbidades, mas onde vai parar o Brasil se nós pararmos?”, questionou o presidente em São Simão (GO).” (Marcelo Toledo e Luís Cláudio, Saúde, Folha de São Paulo, 04/03/2021);

b) “Finalmente o futebol está de volta nesta quarta-feira! Depois de quase um mês de muito blá-blá-blá, mi mi mi e jogos horripilantes, vamos ter três jogos de verdade hoje. Palmeiras x Inter, Grêmio x Bahia, Athletico x Flamengo abrem as quartas de final da Copa do Brasil. Felizmente acabou a Copa América, uma das piores edições da história, que não deixará saudades.” (Ágora São Paulo, Esporte, Folha de São Paulo, 10/07/2019); e

c) “Era um papel bastante distanciado, porque o Estado se comporta como reflexo da sociedade que o compõe, negando esse processo de morte. Desde novembro de 2018, temos uma normativa sobre os cuidados paliativos no SUS. Está aprovado, reconhecido. Precisamos agora ter quem faça. Temos que mostrar ao que viemos, sem mi-mi-mi.” (Paulo Markun, Colunas e Blogs, Folha de São Paulo, 21/08/2019)

Resposta:

Trata-se de uma expressão coloquial de cariz onomatopaico (imita um determinado som ou ruído), que imita depreciativamente o queixume de alguém.

Nestes casos, muito parece depender da tradição de registo dicionarístico, a qual, no caso vertente, parece escassa ou nula, a não ser em certos dicionários colaborativos disponíveis na Internet, como o Dicionário Informal. Curiosamente, "mimimi" também encontra registo no dicionário galego-português de Isaac Estraviz (nesta fonte, também se escreve "blablablá"). Contudo, tendo em conta os registos de blá-blá-blá1com hífen, tem cabimento propor a grafia mi-mi-mi.

Em suma, é palavra que ainda não estabilizou ortograficamente, e, sendo assim, é possível, por enquanto, escrevê-la de diferentes maneiras. Não obstante, sugere-se aqui que mi-mi-mi sobressai como boa opção, pelo motivo apontado.

 

1 Consultaram-se  o vocabulário ortográfico da Academia Brasileira de Letras, o Dicionário Infopédia  e o Dicionário Michaelis.

Pergunta:

A expressão «Antigos Paços do Concelho» deve ser escrita com maiúsculas ou minúsculas?

Obrigada.

Resposta:

Como geralmente é expressão referente a um edifício histórico importante, escreve-se com maiúsculas iniciais: Paços do Concelho. Se a expressão for modificada por antigos (ou outro adjetivo), não se impõe que este comece por maiúscula, embora possa acontecer que a expressão assim adjetivada se torne o nome por que se identifica determinado edifício monumental1.

Note-se, porém, que a locução nominal «paços do concelho», que significa «edifício onde reúne a vereação e onde funcionam os respetivos serviços administrativos» (dicionário da Academia das Ciências de Lisboa), também se regista com minúsculas iniciais, como denominação de qualquer edifício com as referidas funções.

 

1 Rebelo Gonçalves, no seu Vocabulário da Língua Portuguesa (1966), regista Paços do Concelho, com maiúscula inicial. Este autor já tinha antes feito o mesmo registo no Tratado de Ortografia da Língua Portuguesa (1947,p. 331/332), incluindo a expressão entre outras que se grafam com maiúsculas iniciais por constituírem «designações de edifícios ou parte deles, de construções arquitectónicas diversas, de moradias, de propriedades rústicas, ou em quaisquer designações similares dessas».

Pergunta:

A minha questão tem a ver com a utilização do hífen na grafia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990, ou seja, com as regras aplicáveis na vigência do acordo de 1945, ou decorrentes do mesmo ou porque já existiam anteriormente.

Sei que o prefixo semi, escrito com esta grafia só era precedido de hífen se as palavras principiais começassem por h, i, r ou s. E quanto ao prefixo tele?

Com o acordo de 1990, nos últimos dois casos não existe hífen, e o r e o s são dobrados. Mas como era anteriormente? Aplicam-se as regras do prefixo semi? Um texto que não segue o acordo deve escrever, por exemplo "tele-radiestesia" e "tele-receptor"?

Já encontrei vários artigos vossos, mas todos eles se centravam na perspectiva do acordo de 1990. 

Obrigado.

Resposta:

No contexto da anterior norma – o chamado acordo de 1945 –, o prefixo tele agregava-se ao elemento seguinte sem hífen, com duplicação de r e s (telerradigrafia, telessismógrafo) e eventuais supressão de h e elisão vocálica (casos estes que não se documentam nas fontes relativas à referida norma).

Refira-se que, no Tratado de Ortografia da Língua Portuguesa (1947, pp. 252/253), de Rebelo Gonçalves, a forma tele- figurava classificada como prefixo que nunca se escreve seguido de hífen, portanto entre os prefixos que se uniam completamente aos elementos imediatos. A mesma fonte acrescentava em nota (ibidem,n. 8):

«Com esta união, ou os elementos posteriores aos prefixos ficam intactos, ou se dão alterações interiores: supressão do h, duplicação do r ou s, etc.

Preveja-se também [...] o caso de um prefixo não aparecer  na forma plena, por terminar em vogal e esta se elidir ante uma vogal do elemento imediato: endartrite [endo- + artrite],etc.»

Atualmente, a escrita de derivados com o prefixo tele- está sujeita à Base XVI, 1, do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.