Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Gostaria que me esclarecessem quanto ao valor aspetual configurado no seguinte enunciado:

«(Mas quantas vezes, ao lado desse progresso,) vamos deparando com uma acrescida aridez relacional.»

A questão prende-se essencialmente com o valor aspetual presente no complexo verbal «vamos deparando».

Por um lado, parece poder ser imperfetivo; mas será aceitável o habitual ou iterativo?

Obrigada.

Resposta:

Recordemos que o aspeto habitual se associa à descrição de uma situação que «representa um padrão de repetição da situação suficientemente relevante a ponto de poder ser considerado como uma propriedade característica da entidade representada pelo sujeito gramatical»1, ao passo que o aspeto iterativo descreve uma situação «que se obtém quando uma situação é repetida numa porção espácio-temporal delimitada, mas sendo o conjunto dessas repetições perspetivado como um evento único»1.

Se atentarmos na frase apresentada pela consulente, percebemos que o locutor apresenta uma característica habitual de uma dada situação e não uma situação que ocorre num dado intervalo temporal. Assim sendo, a frase veicula um valor aspetual habitual:

(1) «(Mas quantas vezes, ao lado desse progresso,) vamos deparando com uma acrescida aridez relacional.» (destacam-se os segmentos que contribuem para leitura habitual)

Refira-se ainda que este aspeto é muitas vezes compatível com o aspeto imperfetivo. Neste caso, verifica-se esta compatibilidade porque a situação é descrita como estando no seu decurso.

Disponha sempre!

 

1.  Cunha in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 586.

Pergunta:

Gostaria de esclarecer a seguinte dúvida:

Num texto expositivo cuja temática incide sobre a «indiferença nas relações humanas», é possível utilizar expressões como «o homem é cada vez mais indiferente ao que o rodeia», «o homem só se preocupa consigo próprio e ignora os demais», «não podemos ficar indiferentes aos problemas dos outros», entre outras. Estas expressões não fazem parte de um texto de opinião?

Como distinguir expressões próprias do texto de opinião das do texto expositivo?

Obrigada pela atenção.

Resposta:

Um texto de natureza expositiva normalmente tem como objetivo transmitir informações sobre um determinado assunto. Se o texto não tiver qualquer intenção argumentativa, não haverá lugar à apresentação de posições pessoais sobre o assunto.

A questão que é colocada referente à adequação de determinadas afirmações num texto desta natureza não pode ter uma resposta inequívoca porque exige o conhecimento do texto onde estas se incluem.

Assim, se a frase apresentada em (1) corresponder à opinião do autor sobre a matéria em exposição, então não terá lugar num texto desta natureza. Todavia, se o texto apresentar, por exemplo, dados de um estudo sobre a atenção do ser humano ao que o rodeia, a frase poderia corresponder a uma das conclusões do referido estudo, o que significa que poderia integrar o texto expositivo:

(1) «o homem é cada vez mais indiferente ao que o rodeia»

Já a frase apresentada em (2) dificilmente caberá num texto de fim unicamente expositivo, porque ela veicula uma modalidade deôntica (age sobre o outro com um valor de ordem) e envolve a 1.ª pessoa do plural, o que aponta para uma intenção argumentativa:

(2) «não podemos ficar indiferentes aos problemas dos outros»

O texto expositivo deve privilegiar o uso da 3.ª pessoa e a apresentação de enunciados que se encontram ao serviço da apresentação de factos/dados sobre uma dada situação, sem envolver a subjetividade do autor na matéria exposta.

 

Disponha sempre!

Pergunta:

Qual o tipo de modalidade e valor modal das seguintes afirmações:

«Sou a portadora desta carta para Vossa Excelência. Que não venha cá, porque isso seria inútil, e muito perigoso.»

 

Resposta:

As afirmações apresentadas são retiradas da obra Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco.

Usaremos aqui as frases originais da obra.

Assim, na primeira frase, dirigida por Mariana a Teresa, na sequência da pergunta desta última sobre a sua identidade, estamos perante a modalidade epistémica com valor de certeza, que permite a Mariana apresentar-se:

(1) «— Sou uma portadora desta carta para vossa excelência.»

A segunda frase, dita por Teresa a Mariana, apresenta como modalidade dominante a deôntica, com valor de ordem, dando forma à intenção de Teresa de ordenar a Mariana que diga a Simão que está proibido de se aproximar do convento onde ela se encontra:

(2) «[Diz-lhe] Que não venha cá, porque isso seria inútil, e muito perigoso.»

Disponha sempre!

Pergunta:

Venho pedir a vossa ajuda acerca da identificação de um ato ilocutório.

A frase "Pobres, as palavras, insignificantes, insuficientes" constitui um ato ilocutório assertivo ou expressivo? Porquê?

O contexto é um texto de Francisco Assis (jornal Público, 19/11/2023):

«As palavras são incapazes de exprimir algumas alegrias. Pobres, as palavras, insignificantes, insuficientes. Mas a música chega lá.»

Muito obrigada pela vossa ajuda,

Resposta:

O ato ilocutório expressivo visa expressar um dado estado psicológico do locutor, responsável pela frase, relativamente a um estado de coisas presente no enunciado (ou subentendido). Assim, em (1) o locutor manifesta o seu estado psicológico de arrependimento relativamente a uma ação anterior sobre o interlocutor:

(1) «Desculpa-me por te ter magoado.»

Em (2), o locutor expressa o seu estado de agradecimento pelo facto de ele próprio ter concluído o curso:

(2) «Estou feliz por ter concluído o curso.»

Assim, os atos ilocutórios expressivos implicam que o locutor faça um juízo de valor que assenta no efeito de uma dada situação no interlocutor, como em (1), ou nele próprio, como em (2).

Searle apresenta uma lista de verbos performativos que exemplificam os atos ilocutórios expressivos: agradecer, congratular(-se), desculpar-se, exprimir condolências, deplorar, dar as boas-vindas e saudar.

Ora, no caso da frase apresentada, o locutor não expressa o seu estado emocional relativamente a um dado estado de coisas, pelo que, à partida, não estaremos perante um ato ilocutório expressivo. A intenção será antes a de descrever um facto, relacionando o locutor com a verdade do enunciado, o que configura um ato ilocutório assertivo.

Não obstante, a presença dos adjetivos pode alterar a curva entonacional da frase, que passa de assertiva a exclamativa. Este facto leva a que alguns autores defendam que estes serão enunciados híbridos, que conjugam dois atos ilocutórios: o assertivo e o expre...

Pergunta:

Entre colegas, surgiu uma discussão sobre um recurso expressivo na estância 19 d'Os Lusíadas: anástrofe ou hipérbato?

Já no largo Oceano navegavam,
As inquietas ondas apartando;
Os ventos brandamente respiravam,
Das naus as velas côncavas inchando;
Da branca escuma os mares se mostravam
Cobertos [...]

Nesta estância, podemos afirmar que estamos perante anástrofes em «Das naus as velas côncavas inchando» e «Da branca escuma os mares se mostravam/ Cobertos»?

Considero que o hipérbato consiste numa alteração "violenta" na ordem natural da frase, como "os casos que o Adamastor contou futuros".

Desde já, agradeço o vosso esclarecimento.

Resposta:

Tanto a anástrofe como o hipérbato são figuras relacionadas com a ordem das palavras na frase: a sua ação expressiva consegue-se por meio da alteração do sítio natural das palavras. A anástrofe tem um enfoque mais curto, na medida em que corresponde à inversão da ordem normal de palavras que se sucedem, ou seja, de palavras vizinhas. O hipérbato, por seu turno, corresponde a uma alteração da ordem das palavras que separa palavras de maior proximidade sintática, intercalando-as com elementos que não pertencem imediatamente a esse lugar. Os autores definem o hipérbato como uma alteração de natureza mais violenta, o que por vezes “obscurece o pensamento”1, o que não acontece com a anástrofe que traz uma alteração da ordem mais suave2.

Não obstante, refira-se que vários autores defendem que, em muitos exemplos, não é fácil distinguir anástrofe de hipérbato.

Nos versos de Camões, existe uma alteração da ordem natural das palavras:

(1) «Das naus as velas côncavas inchando» (= «inchando as velas côncavas das naus»)

(2) «Da branca escuma os mares se mostravam/ Cobertos» («os mares mostravam-se cobertos da branca escuma»)

Se compararmos os versos originais com os enunciados onde se faz a reposição da ordem natural, poderemos afirmar que esta alteração não foi violenta: em (1), ao verbo antepõe-se o complemento direto e a este constituinte antepõe-se o complemento do nome; em (2) antepõe-se o complemento do adjetivo.

Por esta razão, a meu ver, estamos perante um caso de anástrofe.

Disponha sempre!

 

1. Massaud Moisés, Dicionário de ...