Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
124K

Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Observem a frase:

«Não fazia coisa alguma SENÃO CRITICAR.»

A oração em caixa alta é uma adversativa? Se for, o senão não deveria estar virgulado?

Desde já agradeço a enorme atenção dos Senhores!

Resposta:

Não deverá ser colocada vírgula antes de senão.

Senão é uma partícula de exclusão, considerada por alguns gramáticos como uma preposição atípica1. O constituinte introduzido por senão, funcionando em complemento de um constituinte que aponta para um grupo de valor universal, introduz uma expressão que sinaliza uma situação excluída do grupo.

Assim, na frase apresentada pelo consulente, o constituinte «não… coisa alguma» aponta para uma quantificação universal que sinaliza a total ausência de atividades. O constituinte introduzido por senão vem apresentar a única situação que se exclui desse conjunto. Estes dois constituintes mantêm com o verbo fazer a mesma relação sintática, desempenhando a função de complemento direto, não tendo o sintagma introduzido por senão um valor apositivo. Trata-se, portanto, de um constituinte que funciona como um todo, o que também é comprovado pelo facto de, do ponto de vista entoacional, não se verificar uma pausa entre eles.

Pelo exposto, não haverá lugar a vírgula antes da preposição senão.

Disponha sempre!

 

1. Cf. A discussão deste aspeto em Matos e Raposo in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 1811-1814.

Pergunta:

Por que incluímos determinadas palavras na classe fechada dos pronomes adjuntos (ou pronomes adjetivos)?

A dúvida é anterior à determinação da quantidade de adjetivos ou de pronomes adjuntos, pois ela se refere a seus respectivos conceitos.

Em outras palavras, qual conceito determina que certas palavras sejam pronomes (adjuntos), e não adjetivos, dado que ambas as classes se referem ao nome?

Resposta:

As classes do pronome e dos adjetivos têm características e comportamentos distintos, o que justifica a sua autonomização desde os primórdios dos estudos gramaticais. No latim, encontramos já referência ao pronomen («em lugar do nome») e ao adiectivum nomen («nome que se acrescenta»).

Existem perspetivas diferentes no tratamento a dar a palavras como por exemplo meu ou aquele. A classe de pertença destas palavras (e de outras da mesma natureza) define-se, de acordo com Bechara, por reunir «unidades em número limitado e que se refere a um significado léxico pela situação ou por outras palavras do contexto»1. Desta definição retira-se que os pronomes constituem uma classe fechada e têm a função de localizar outras palavras em relação à situação ou de apontar para outras palavras do contexto.

Os pronomes podem, no quadro de algumas gramáticas, distinguir-se em pronomes absolutos e pronomes adjetivos ou adjuntos2. Os pronomes absolutos não se referem a nenhum substantivo determinado, como acontece com isto na frase (1):

(1) «Isto é muito importante.»

Os pronomes adjuntos (adjetivos) têm sempre referência a um substantivo, como se verifica com meu na frase (2):

(2) «O meu livro é o mais interessante de todos.»

O adjetivo, por seu turno, tem uma função diferente, uma vez que indica uma qualidade, o aspeto ou estadodo substantivo (e a ordem, no caso dos adjetivos numerais). Para além disso, o adjetivo caracteriza-se por variar tipicamente em grau e constitui uma classe aberta de palavras.

Disponha sempre!

 

Pergunta:

Desejava esclarecer uma dúvida sobre a apóstrofe, recurso expressivo.

Sabemos «que consiste na interrupção do discurso para invocar, através do vocativo, alguém ou algo a que se se atribuem características de pessoa» (in Dicionário Breve de Termos Literários, de Olegário Paz e António Moniz), ou «RETÓRICA – recurso estilístico que consiste numa interpelação, geralmente exclamativa, a algo (normalmente personificado) ou alguém (usualmente ausente), por norma realizada através da utilização do vocativo e do discurso direto e destinada a conferir vivacidade e/ou realismo ao discurso» (apóstrofeDicionário Infopédia da Língua Portuguesa).

A dúvida é a seguinte:

– Na estância 133, do Canto III, d’Os Lusíadas, a apóstrofe está apenas no vocativo, «ó sol», ou no conjunto dos versos 1 a 4 da mesma estância? O mesmo se dirá da apóstrofe aos «côncavos vales» – a apóstrofe está apenas no vocativo, «ó côncavos vales», ou no conjunto dos versos 5 a 8 da referida estância?

De acordo com a primeira definição, sim, o recurso está apenas no vocativo. Porém, a interpelação ao «sol» ou aos «côncavos vales» está presente no conjunto dos versos que indico.

Antecipadamente, grata pela atenção.

Resposta:

Se colocarmos os versos da estância 133, do Canto III d’Os Lusíadas na ordem natural, obteremos a frase que se apresenta em (1)

(1) «Ó Sol, bem puderas apartar teus raios da vista destes aquele dia, como da seva mesa de Tiestes, quando comia os filhos por mão de Atreu.»

A ordem natural da frase mostra-nos que o constituinte «ó Sol» é autónomo, não tendo outros constituintes subordinados. Este constituinte desempenha a função sintática de vocativo e corresponde ao recurso expressivo designado apóstrofe.

Na segunda frase da estância, tem lugar uma situação idêntica, uma vez que o constituinte «Ó côncavos vales» é também autónomo, desempenhando a função sintática de vocativo e correspondendo estilisticamente à apóstrofe:

(2) «Ó côncavos vales, vós, que pudestes ouvir da boca fria a voz extrema, repetistes por muito grande espaço o  nome do seu Pedro, que lhe ouvistes!

Disponha sempre!

Pergunta:

Numa das respostas excelentes do Ciberdúvidas afirma-se que «salvo é um conector que pode introduzir sintagmas nominais (1), orações infinitivas (2) e sintagmas preposicionais (3)».

Embora em espanhol exista a conjunção salvo que, parece-me que esta não existe no português. No entanto, tenho visto (raramente), nos ambientes jurídicos, salvo usado num sentido análogo ao das conjunções.

Fiquei com a dúvida se esse uso é gramatical. Se o é, como classificaríamos salvo neste caso?

«Esta legitimidade é determinada em função dos termos em que a relação material controvertida é configurada na petição inicial, salvo a lei indique em contrário.»

Obrigado.

Resposta:

A palavra salvo não tem uma classificação estável nas gramáticas portuguesas. Com efeito, algumas posições incluem salvo entre as preposições acidentais1. Outras perspetivas incluem-na na classe dos advérbios (com valor de exclusão)2. Encontramos ainda registo de «salvo se» integrado nas locuções conjuncionais condicionais3 ou considerado como conector de valor concessivo4.

Tal como se afirmou nesta resposta, salvo pode combinar-se com sintagmas nominais, orações infinitivas ou sintagmas preposicionais, mas, acrescente-se, não diretamente com orações finitas5.  Por essa razão, não é aceitável a frase (1):

(1) «*Leio livros de todo o tipo, salvo leio livros de autoajuda.»

A frase apresentada em (1) já seria aceitável se salvo fosse seguido de sintagma nominal:

(2) «Leio livros de todo o tipo, salvo livros de autoajuda.»

A locução «salvo se» já poderá ser acompanhada de oração finita, com verbo no conjuntivo, em situações em que se expressa a condição / hipótese:

(3) «Vou comprar todos os livros deste autor, salvo se forem muito caros.»

Uma breve pesquisa em legislação portuguesa devolveu usos de «salvo se» e de «salvo quando», com um valor hipotético-temporal, como em (4):

(4) «Salvo quando a lei dispuser de forma diferente, incumbem à testemunha os deveres de […]»

Todavia, não identificámos usos semelhantes aos que o consulente refere. Não obstante...

Pergunta:

Bem haja o Ciberdúvidas, e bem hajam os seus colaboradores pelo importante veículo que são em prol do correto uso da nossa língua.

Muito agradeço o vosso esclarecimento sobre o seguinte:

Atentas as expressões, frequentes:

A. «Se não queres que ninguém saiba, não o faças nem o digas.»

B. «Se queres que ninguém saiba, não o faças nem o digas.»

Que as duas expressões são convergentes, acho que sim, que são. Mas serão ambas corretas ou só uma em prejuízo da outra? E no último caso, qual delas?

A resposta poderá ser a sacramental (que penso ser a A.), mas a dúvida subsiste.

Agradeço o vosso douto comentário.

Resposta:

Ambas as expressões são corretas e são equivalentes.

Do ponto de vista semântico, uma frase como a que se apresenta em (1) inclui uma construção de concordância negativa, que leva a que o segundo elemento negativo (neste caso, ninguém) seja interpretado com um valor positivo1:

(1) «Tu não queres que ninguém saiba.»

A frase (1) é assim equivalente a (2):

(2) «Não é verdade que tu queres que alguém saiba.»

Por esta razão, a frase que se apresenta em (3) é também interpretada como equivalente a (1):

(3) «Tu queres que ninguém saiba.»

Assim sendo, as duas frases apresentadas pelo consulente são possíveis e equivalentes, embora a construção com concordância negativa («não… ninguém») pareça ser preferida pelos falantes.

Muito agradecemos as suas gentis palavras que nos motivam a continuar a defesa da língua portuguesa.

 

1.  Peres in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 490.