Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Desejava esclarecer uma dúvida sobre a apóstrofe, recurso expressivo.

Sabemos «que consiste na interrupção do discurso para invocar, através do vocativo, alguém ou algo a que se se atribuem características de pessoa» (in Dicionário Breve de Termos Literários, de Olegário Paz e António Moniz), ou «RETÓRICA – recurso estilístico que consiste numa interpelação, geralmente exclamativa, a algo (normalmente personificado) ou alguém (usualmente ausente), por norma realizada através da utilização do vocativo e do discurso direto e destinada a conferir vivacidade e/ou realismo ao discurso» (apóstrofeDicionário Infopédia da Língua Portuguesa).

A dúvida é a seguinte:

– Na estância 133, do Canto III, d’Os Lusíadas, a apóstrofe está apenas no vocativo, «ó sol», ou no conjunto dos versos 1 a 4 da mesma estância? O mesmo se dirá da apóstrofe aos «côncavos vales» – a apóstrofe está apenas no vocativo, «ó côncavos vales», ou no conjunto dos versos 5 a 8 da referida estância?

De acordo com a primeira definição, sim, o recurso está apenas no vocativo. Porém, a interpelação ao «sol» ou aos «côncavos vales» está presente no conjunto dos versos que indico.

Antecipadamente, grata pela atenção.

Resposta:

Se colocarmos os versos da estância 133, do Canto III d’Os Lusíadas na ordem natural, obteremos a frase que se apresenta em (1)

(1) «Ó Sol, bem puderas apartar teus raios da vista destes aquele dia, como da seva mesa de Tiestes, quando comia os filhos por mão de Atreu.»

A ordem natural da frase mostra-nos que o constituinte «ó Sol» é autónomo, não tendo outros constituintes subordinados. Este constituinte desempenha a função sintática de vocativo e corresponde ao recurso expressivo designado apóstrofe.

Na segunda frase da estância, tem lugar uma situação idêntica, uma vez que o constituinte «Ó côncavos vales» é também autónomo, desempenhando a função sintática de vocativo e correspondendo estilisticamente à apóstrofe:

(2) «Ó côncavos vales, vós, que pudestes ouvir da boca fria a voz extrema, repetistes por muito grande espaço o  nome do seu Pedro, que lhe ouvistes!

Disponha sempre!

Pergunta:

Numa das respostas excelentes do Ciberdúvidas afirma-se que «salvo é um conector que pode introduzir sintagmas nominais (1), orações infinitivas (2) e sintagmas preposicionais (3)».

Embora em espanhol exista a conjunção salvo que, parece-me que esta não existe no português. No entanto, tenho visto (raramente), nos ambientes jurídicos, salvo usado num sentido análogo ao das conjunções.

Fiquei com a dúvida se esse uso é gramatical. Se o é, como classificaríamos salvo neste caso?

«Esta legitimidade é determinada em função dos termos em que a relação material controvertida é configurada na petição inicial, salvo a lei indique em contrário.»

Obrigado.

Resposta:

A palavra salvo não tem uma classificação estável nas gramáticas portuguesas. Com efeito, algumas posições incluem salvo entre as preposições acidentais1. Outras perspetivas incluem-na na classe dos advérbios (com valor de exclusão)2. Encontramos ainda registo de «salvo se» integrado nas locuções conjuncionais condicionais3 ou considerado como conector de valor concessivo4.

Tal como se afirmou nesta resposta, salvo pode combinar-se com sintagmas nominais, orações infinitivas ou sintagmas preposicionais, mas, acrescente-se, não diretamente com orações finitas5.  Por essa razão, não é aceitável a frase (1):

(1) «*Leio livros de todo o tipo, salvo leio livros de autoajuda.»

A frase apresentada em (1) já seria aceitável se salvo fosse seguido de sintagma nominal:

(2) «Leio livros de todo o tipo, salvo livros de autoajuda.»

A locução «salvo se» já poderá ser acompanhada de oração finita, com verbo no conjuntivo, em situações em que se expressa a condição / hipótese:

(3) «Vou comprar todos os livros deste autor, salvo se forem muito caros.»

Uma breve pesquisa em legislação portuguesa devolveu usos de «salvo se» e de «salvo quando», com um valor hipotético-temporal, como em (4):

(4) «Salvo quando a lei dispuser de forma diferente, incumbem à testemunha os deveres de […]»

Todavia, não identificámos usos semelhantes aos que o consulente refere. Não obstante...

Pergunta:

Bem haja o Ciberdúvidas, e bem hajam os seus colaboradores pelo importante veículo que são em prol do correto uso da nossa língua.

Muito agradeço o vosso esclarecimento sobre o seguinte:

Atentas as expressões, frequentes:

A. «Se não queres que ninguém saiba, não o faças nem o digas.»

B. «Se queres que ninguém saiba, não o faças nem o digas.»

Que as duas expressões são convergentes, acho que sim, que são. Mas serão ambas corretas ou só uma em prejuízo da outra? E no último caso, qual delas?

A resposta poderá ser a sacramental (que penso ser a A.), mas a dúvida subsiste.

Agradeço o vosso douto comentário.

Resposta:

Ambas as expressões são corretas e são equivalentes.

Do ponto de vista semântico, uma frase como a que se apresenta em (1) inclui uma construção de concordância negativa, que leva a que o segundo elemento negativo (neste caso, ninguém) seja interpretado com um valor positivo1:

(1) «Tu não queres que ninguém saiba.»

A frase (1) é assim equivalente a (2):

(2) «Não é verdade que tu queres que alguém saiba.»

Por esta razão, a frase que se apresenta em (3) é também interpretada como equivalente a (1):

(3) «Tu queres que ninguém saiba.»

Assim sendo, as duas frases apresentadas pelo consulente são possíveis e equivalentes, embora a construção com concordância negativa («não… ninguém») pareça ser preferida pelos falantes.

Muito agradecemos as suas gentis palavras que nos motivam a continuar a defesa da língua portuguesa.

 

1.  Peres in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 490.

Pergunta:

Gostaria que me esclarecessem quanto ao valor aspetual configurado no seguinte enunciado:

«(Mas quantas vezes, ao lado desse progresso,) vamos deparando com uma acrescida aridez relacional.»

A questão prende-se essencialmente com o valor aspetual presente no complexo verbal «vamos deparando».

Por um lado, parece poder ser imperfetivo; mas será aceitável o habitual ou iterativo?

Obrigada.

Resposta:

Recordemos que o aspeto habitual se associa à descrição de uma situação que «representa um padrão de repetição da situação suficientemente relevante a ponto de poder ser considerado como uma propriedade característica da entidade representada pelo sujeito gramatical»1, ao passo que o aspeto iterativo descreve uma situação «que se obtém quando uma situação é repetida numa porção espácio-temporal delimitada, mas sendo o conjunto dessas repetições perspetivado como um evento único»1.

Se atentarmos na frase apresentada pela consulente, percebemos que o locutor apresenta uma característica habitual de uma dada situação e não uma situação que ocorre num dado intervalo temporal. Assim sendo, a frase veicula um valor aspetual habitual:

(1) «(Mas quantas vezes, ao lado desse progresso,) vamos deparando com uma acrescida aridez relacional.» (destacam-se os segmentos que contribuem para leitura habitual)

Refira-se ainda que este aspeto é muitas vezes compatível com o aspeto imperfetivo. Neste caso, verifica-se esta compatibilidade porque a situação é descrita como estando no seu decurso.

Disponha sempre!

 

1.  Cunha in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 586.

Pergunta:

Gostaria de esclarecer a seguinte dúvida:

Num texto expositivo cuja temática incide sobre a «indiferença nas relações humanas», é possível utilizar expressões como «o homem é cada vez mais indiferente ao que o rodeia», «o homem só se preocupa consigo próprio e ignora os demais», «não podemos ficar indiferentes aos problemas dos outros», entre outras. Estas expressões não fazem parte de um texto de opinião?

Como distinguir expressões próprias do texto de opinião das do texto expositivo?

Obrigada pela atenção.

Resposta:

Um texto de natureza expositiva normalmente tem como objetivo transmitir informações sobre um determinado assunto. Se o texto não tiver qualquer intenção argumentativa, não haverá lugar à apresentação de posições pessoais sobre o assunto.

A questão que é colocada referente à adequação de determinadas afirmações num texto desta natureza não pode ter uma resposta inequívoca porque exige o conhecimento do texto onde estas se incluem.

Assim, se a frase apresentada em (1) corresponder à opinião do autor sobre a matéria em exposição, então não terá lugar num texto desta natureza. Todavia, se o texto apresentar, por exemplo, dados de um estudo sobre a atenção do ser humano ao que o rodeia, a frase poderia corresponder a uma das conclusões do referido estudo, o que significa que poderia integrar o texto expositivo:

(1) «o homem é cada vez mais indiferente ao que o rodeia»

Já a frase apresentada em (2) dificilmente caberá num texto de fim unicamente expositivo, porque ela veicula uma modalidade deôntica (age sobre o outro com um valor de ordem) e envolve a 1.ª pessoa do plural, o que aponta para uma intenção argumentativa:

(2) «não podemos ficar indiferentes aos problemas dos outros»

O texto expositivo deve privilegiar o uso da 3.ª pessoa e a apresentação de enunciados que se encontram ao serviço da apresentação de factos/dados sobre uma dada situação, sem envolver a subjetividade do autor na matéria exposta.

 

Disponha sempre!