Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Gostaria de saber se há algum problema gramatical com a seguinte frase:

«Ela corre veloz.»

Porque normalmente falamos: «Ela corre rápido.»

Ou o ideal devia ser «Ela corre velozmente»?

Resposta:

A opção mais elegante será a construção «corre velozmente». Esta opção deve-se ao facto de a classe do verbo se compatibilizar com a do advérbio, que incide sobre aquele modificando-o. Neste caso, o advérbio velozmente incide sobre correr, expressando um valor de modo.

Não obstante, uma pesquisa no Corpus do Português, de Mark Davies, mostra-nos que a construção «corre veloz» também tem registos de uso, particularmente no português do Brasil. Este facto justifica-se pela possibilidade de uma utilização do adjetivo veloz com leitura adverbial. Esta será, todavia, uma opção menos cuidada e, portanto, mais aceitável em contexto de menor formalidade.

Disponha sempre!

Pergunta:

Ao utilizar «de que» numa frase mais do que uma vez, é necessário repetir sempre esta combinação? Deixo alguns exemplos abaixo:

– a) «Certifique-se de que o motor liga e de que a luz acende», ou b) «Certifique-se de que o motor liga e que a luz acende»;

– a) «Certifique-se de que o dispositivo está instalado, de que não está danificado e de que funciona corretamente», ou b) «Certifique-se de que o dispositivo está instalado, que não está danificado e que funciona corretamente.»

Agradeço, desde já, a atenção dispensada.

Resposta:

Relativamente à questão apresentada, há três possibilidades a considerar.

Uma delas, a mais formal, é a se manter, nas estruturas coordenadas a preposição e a conjunção, como se exemplifica em (1):

(1) «Certifique-se de que o motor liga e de que a luz acende.»

Outra possibilidade será a de omitir a preposição regida pelo verbo. Esta é uma opção que tem lugar em contextos mais informais ou em situações de oralidade. Trata-se de uma possibilidade que advém do facto de a preposição de ter uma semântica pouco evidente, sendo a sua função sobretudo gramatical. Assim, é possível, nos contextos referidos, a frase apresentada em (2):

(2) «Certifique-se que o motor liga e que a luz acende.»

Uma outra opção será aquela em que na coordenação se omitem preposição e conjunção, como em (3):

(3) «Certifique-se de que o motor liga e a luz acende.»

Já a opção por eliminar apenas a preposição traz desequilíbrio à frase, pelo que, pelo menos num registo cuidado, não é aceitável:

(4) «Certifique-se de que o motor liga e que a luz acende.»

Disponha sempre!

Pergunta:

Qual a diferença entre «cooperação amigável» e «cooperação amistosa»?

Muito obrigado.

Resposta:

É difícil estabelecer uma fronteira entre as duas expressões, dado que elas são usadas como equivalentes. Este facto deve-se à sinonímia existente entre amigável e amistoso.

Amigável significa «que é próprio dos que se querem bem, dos amigos; que se processa de forma afetuosa, com amizade; que não envolve conflito; que é feito ou se resolve a bem, que é de comum acordo; de fácil utilização; que é intuitivo» (Dicionário da Língua Portuguesa). Já amistoso é usado com os seguintes sentidos: «que é próprio de amigo, que demonstra amizade; que se apresenta ou revela agradável». Tanto um adjetivo como outro se combinam com diferentes nomes com um efeito semelhante, como se verifica em «jogo amigável / amistoso»; «conversa amigável / amistosa» (Dicionário da Língua Portuguesa). O mesmo se verifica relativamente às expressões apresentadas pelo consulente «cooperação amigável/ amistosa», que são comummente usadas nos mesmos contextos e com sentidos equivalentes:

(1) «Pequim e Riade “mantêm cooperação amigável em todas as áreas”» (Expresso)

(2) «Acabou-se a união, começa a “cooperação amistosa”» (Expresso)

Disponha sempre!

Pergunta:

Em vista das regras da crase e da sinalefa, acerca das quais tenho lido alguns artigos no Ciberdúvidas, sem no entanto ter percebido quais os limites para a aplicação das mesmas, gostaria de saber como se divide as sílabas métricas do seguinte hipotético verso:

Ou a aia ia ou ia eu aí.

Muito obrigado.

Resposta:

De acordo com as noções de versificação apresentadas por Cunha e Cintra, estamos perante um caso de sinalefa quando uma vogal «perde[r] a sua autonomia sintática e torna-se uma semivogal, que passa a formar ditongo com a vogal seguinte»1. Já a crase corresponde à «fusão de duas vogais idênticas numa só»2. Para além destes dois fenómenos de contração, consideramos ainda a elisão, por meio da qual «a primeira vogal pode desaparecer na pronúncia diante de uma vogal de natureza diversa»3.

No caso apresentado, uma das possibilidades é a de existência de sinalefa na segunda sílaba métrica, uma vez que esta sílaba pode ser pronunciada como um ditongo (“owa”):

(1) «O/u a/ ai/a/ i/a/ ou/ i/a/ eu/ a/í/»

Este verso teria, assim, 12 sílabas métricas.

Disponha sempre!

 

1. Cunha e Cintra, Nova gramática do português contemporâneo. Ed. Sá da Costa, p. 667.

2. Idem, ibid., p. 672

3. Idem, ibid., p. 668.

Pergunta:

A Gramática do Português da Fundação Calouste Gulbenkian distingue as orações passivas em verbais, resultativas e estativas, entre outras.

No entanto, os exemplos dados por ela pareceram-me muito acomodatícios deixando de fora muitos outros, ficando eu sem saber julgá-los, pois os critérios apontados na gramática não se coadunam com as caraterísticas deles.

Na página 441, no penúltimo parágrafo, a gramática chega a afirmar a impossibilidade de haver agente da passiva nas orações passivas resultativas
e na página 444 no segundo parágrafo afirma que a passiva estativa não tem componente agentiva.

Por [tais critérios] me parecerem entrar em contradição com a gramática, cheguei até a duvidar da gramaticalidade das frases abaixo (2 e 3), no entanto, qualquer nativo português ou brasileiro a quem perguntei me assegurou da correção delas.

1) A cidade foi infestada pelos ratos.

2) A cidade ficou infestada pelos ratos.

3) A cidade está infestada pelos ratos.

A mim parece-me que "os ratos" [...] são de fato agentes da infestação e podem ser considerados agentes da passiva, ou não?

O que me parece é que depende dos verbos, como poderemos ver nos seguintes exemplos:

  1. A procuração já foi assinada pelo presidente.
  2. A procuração já está assinada pelo presidente.
  3. Finalmente a procuração ficou assinada pelo presidente.

Resposta:

Podemos considerar três tipos de passivas, de acordo com o que se defende na Gramática do Português: as passivas verbais, as passivas resultativas e as passivas estativas.

Antes de mais, é importante considerar as frases passivas verbais típicas, as quais se constroem com verbos transitivos que pedem um complemento direto e têm como argumento externo o sujeito. É o caso da frase ativa apresentada em (1), que se converte na frase passiva em (1a):

(1) «o João comeu um pão.»

(1a) «Um pão foi comido pelo João.»

É desta natureza a frase 1) apresentada pelo consulente, que aqui transcrevemos na forma ativa (2) e passiva (2a):

(2) «Os ratos infestaram a cidade.»

(2a) «A cidade foi infestada pelos ratos.»

Tal como se refere na Gramática do Português, «as orações passivas verbais descrevem tipicamente situações dinâmicas, i.e., em que uma das entidades envolvidas sofre alguma mudança. Por outras palavras, estas orações descrevem tipicamente eventos e não estados»1.

Por essa razão, em geral, os verbos estativos não são compatíveis com a forma passiva. Excetuam-se deste grupo os verbos estativos epistémicos (3) e psicológicos (4), ou seja, os verbos relativos ao conhecimento e os verbos que expressam sentimentos2:

(3) «O João já conhecia esta livro.»

(3a) «Este livro já era conhecido pelo João.»

(4) «O João amava a Rita.»

(4a) «A Rita era amada pelo João.»

Na Gramática do Português apresenta-se um segundo tipo específico de passiva: a passiva resultativa. Este é um caso muito particula...