Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Surgiu-me a dúvida acerca da modalidade e respetivo valor concretizados no seguinte enunciado: «Podemos contactar com várias espécies de animais no parque.»

Parece-me ser a modalidade epistémica com valor de certeza. Podem elucidar-me, por favor?

Obrigada.

Resposta:

A identificação do valor modal veiculado pela frase apresentada fica dependente do contexto em que ela ocorrer.

Com efeito, se a frase surgir, por exemplo, no contexto da descrição de um dado parque, a frase transcrita em (1) pode veicular a modalidade epistémica com valor de probabilidade (aqui incluindo também o valor de possibilidade, visto que, no ensino secundário, não se distinguem estes valores), na medida em que o locutor apresenta um dado estado de coisas indicando que é possível que ele possa vir a ter lugar:

(1) «Podemos contactar com várias espécies de animais no parque.»

Todavia, se a frase surgir num contexto em que o locutor indica aos seus interlocutores que, no decurso da visita ao parque, estão autorizados a interagir com os animais, neste caso já veiculará a modalidade deôntica com valor de permissão.

Disponha sempre!

O verbo e o substantivo <i>bazar</i>
Um caso de homonímia

Neste apontamento, incluído no programa Páginas de Português, na Antena 2, no dia 5 de novembro de 2023, a professora Carla Marques analisa um caso de homonímia da palavra bazar.

Pergunta:

Considere-se a frase «O homem, orgulhoso, se considera feliz».

A oração tem dois predicativos: «orgulhoso» e «feliz»?

No caso «orgulhoso» é predicativo do sujeito?

«Feliz» é predicativo do objeto direto?

Obrigado.

Resposta:

O adjetivo orgulhoso integra um constituinte com a função de sujeito, como se observa pela possibilidade de pronominalização pelo pronome ele:

(1) «O homem, orgulhoso, se considera feliz.»

(2) «Ele se considera feliz.»

No interior do constituinte «O homem, orgulhoso», o adjetivo orgulhoso estabelece uma relação sintático-semântica com o nome homem, desempenhando a função sintática de aposto (modificador do nome apositivo). Note-se que o aposto é tradicionalmente exemplificado por meio de estruturas nominais, mas esta função sintática pode também ser desempenhada por um adjetivo, como se explica nesta resposta

O adjetivo feliz, por seu turno, integra o constituinte «se considera feliz», que tem a função de predicado. No interior deste constituinte, está presente o verbo considerar, que é um verbo transitivo-predicativo, o que implica que se constrói com dois argumentos: um complemento direto e um predicativo do complemento direto. Assim sendo, o adjetivo feliz desempenha, neste caso, a função de predicativo do complemento direto.

Disponha sempre!

 

Nota (04/11/2023) – Se enquadrarmos a nossa análise numa perspetiva mais tradicional como a que está presente na Nova Gramática do Português Contemporâneo, de Cun...

Pergunta:

Existe alguma diferença semântica entre os verbos viver e morar no sentido de residir em determinado lugar ou região?

Considere-se, a título de exemplo, a seguinte frase: «Nos primeiros anos da década de 1990, vivia/morava em Jerusalém por períodos de vários meses.»

Neste caso, será indiferente o emprego de qualquer um dos verbos?

Resposta:

Os verbos viver e morar podem ser considerados sinónimos em alguns contextos nos quais partilham a componente semântica de lugar, o que significa que se constroem com um complemento que tenha um valor locativo, como acontece em (1) e (2):

(1) «Ele vivia em Jerusalém.»

(2) «Ele morava em Jerusalém.»

O verbo morar tem uma significação mais restrita que poderá ser equivalente a significados como «ter residência permanente em determinado lugar»1 ou «ocupar uma casa, espaço habitacional, fazendo dele o seu lar»1. O verbo viver, por sua vez, poderá ser usado com um valor equivalente a morar, com o sentido mais lato de «habitar, alguém, em determinado local, região ou país».

Noutros sentidos, o verbo viver já não será equivalente a morar, quando usado com valores como os indicados abaixo, entre outros possíveis:

(3) «Deve comer para viver.» (apresentar, um ser vivo, as funções vitais que lhe são caraterísticas1)

(4) «Este animal vive, em média, dez anos.» (ter, um ser vivo, determinada duração de vida1)

(5) «Ele vive da agricultura.» (ter, alguém, a sua forma de subsistência em determinada atividade1)

Deste modo, na frase apresentada, os verbos morar e viver podem ser usados como sinónimos com o sentido de «habitar num determinado local».

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1. Dicionário da Língua Portuguesa, da Academia das Ciências de Lisboa (em linha).

Pergunta:

Tenho acompanhado na jurisprudência e na doutrina do Direito utilizarem-se expressões como «não deve ser permitido», «não deve ser exercido» e «não deve sacrificar». Em todas estas situações eu vejo o «deve» a ser utilizado no lugar do «pode», entretanto, venho verificando recorrentemente a utilização de expressões como aquelas tanto em Angola como em Portugal.

A mim incomoda porque aquelas frases ficariam muito melhor construídas com o «pode» («não pode ser permitido», «não pode ser exercido», e «não pode sacrificar»). Aquelas expressões são correctas?

Obrigado.

Resposta:

As construções com o verbo auxiliar dever estão formalmente corretas.

O verbo dever pode ser usado como um verbo auxiliar modal que expressa ou um valor de obrigação (modalidade deôntica) ou um valor de dúvida (modalidade epistémica). Analisemos a frase apresentada em (1):

(1) «A Rita deve abrir a porta.»

Nesta frase, o verbo dever associado ao verbo abrir pode traduzir um valor de obrigação. Neste caso, a frase será interpretada como «A Rita tem a obrigação de abrir a porta.» Em função do contexto, o verbo dever pode também expressar a dúvida, sendo a frase equivalente a «Talvez a Rita abra a porta.»

No caso dos textos jurídicos em questão, é assim possível a leitura do verbo dever com o valor de obrigação.

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