Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

É correto dizer «Falaste mais bem dele do que mal» ou dever-se-ia dizer: «Falaste melhor...»?

Efetivamente, o senso comum diz-nos que, quando o verbo não está no particípio passado, se deve dizer melhor. No entanto, no entender de alguns puristas como Sá Nogueira, melhor é comparativo de «mais bom» e nunca de «mais bem», como julgo que afirmam numa das vossas respostas.

Mesmo assim, esta posição será válida?

Tendo fundamento, devemos ser nós mais puristas ou laxistas?

Malgrado a insistência neste tópico que se faz presente nas respostas inúmeras dadas aqui na página, gostaria que me elucidassem (e, se o assunto for polémico e não se importarem, debatessem) as minhas dúvidas.

Um bem-haja a todos os consultores!

Resposta:

A frase «Falaste mais bem dele do que mal» será a mais aceitável. 

Recorde-se que melhor é comparativo de superioridade do adjetivo bom, não se usando a forma «mais bom», exceto quando se comparam «duas qualidades ou ações»1:

(1) «Ele é mais bom do que inteligente.»1

A forma melhor é também comparativo do advérbio bem.

Defende a posição mais normativa que junto a um particípio/adjetivo participal se deve usar «mais bem» e não melhor:

(2) «Ele está mais bem preparado do que eu.»

No entanto, há autores que discordam e consideram que atualmente se podem usar as duas formas (é o caso de Bechara, que cita também Mário Barreto2).

Depois de um verbo, usa-se melhor e não «mais bem»:

(3) «Aqui ele estuda melhor.»

No caso colocado pelo consulente, surge o advérbio bem e, nesta construção, parece-nos que a forma «mais bem» será a mais frequente porque, como explica Carlos Rocha, citando Vasco Botelho de Amaral, «[n]ote-se que é de uso empregar mais mal quando se expressam qualidades no mesmo sujeito: "V. Ex.ª escreve mais mal que bem." Por outras palavras, quando os advérbios mal e bem são os próprios termos da comparação, emprega-se "mais mal do que bem". Sendo assim, parece ficar também legitimada uma frase em que ocorra «mais bem do que mal», por exemplo, como acontece neste diálog...

Pergunta:

Gostaria, por gentileza, de uma orientação sobre poder ou não suprimir o substantivo (no caso tempo) em construções como os exemplos abaixo:

«Só gosto de músicas de quando eu era criança.»

«Só gosto de músicas do tempo quando eu era criança.»

Daí, fica a dúvida qual das duas construções está correta ou ambas estão?

Obrigado.

Resposta:

Há duas frases possíveis:

(1) «Só gosto de músicas de quando eu era criança.»

(2) «Só gosto de músicas do tempo em que eu era criança.»

O advérbio relativo quando tem a capacidade de introduzir orações relativas com um valor temporal (como em (1)). No entanto, este advérbio tem a limitação de não ser usado com antecedente explícito1, daí a inaceitabilidade da frase apresentada em (3):

(3) «*Só gosto de músicas do tempo quando eu era criança.»

Desta forma, se se pretende explicitar o antecedente na frase, a opção adequada será a que se apresenta em (2), onde o antecedente tempo é retomado pelo pronome relativo que, antecedido da preposição em.

Disponha sempre!

 

* Assinala a inaceitabilidade da frase. 

1. Para mais informações, cf. Veloso in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, 2013, pp. 2107-2108.

Pergunta:

Na frase «João admira os mesmos pintores que Caio», entende-se que houve a elipse de «admira», isto é, «[…] que Caio (admira)».

Mas estaria igualmente correta uma frase como «João gosta dos mesmos pintores que Caio», considerando-se que o verbo «gostar» pede objeto indireto?

Se considerássemos somente a elipse do verbo, teríamos esta frase agramatical:

*«João gosta dos mesmos pintores que Caio (gosta)».

Ou seja, há que pressupor também a elipse da preposição de:

«João gosta dos mesmo pintores (de) que Caio (gosta)».

É pressuposto aceitável? Está correta a frase «João gosta dos mesmos pintores que Caio»? Se não, que torneios devemos dar à frase para corrigi-la?

Agradeço desde já quaisquer esclarecimentos.

Resposta:

Comecemos por fazer uma precisão: na frase (1), o constituinte «de pintores» tem a função de complemento oblíquo / complemento relativo. Não é complemento indireto porque não se pode substituir pelo pronome lhe.

(1) «Caio gosta de pintores.»

Uma frase como (2) é composta por duas orações: uma subordinante e outra subordinada relativa, introduzida pelo pronome que, o qual tem como antecedente o constituinte pintores:

(2) «João gosta dos mesmos pintores que Caio.»

A segunda oração caracteriza-se pela elipse do verbo gostar, pelo que a frase na sua forma completa seria a que se apresenta em (3):

(3) «João gosta dos mesmos pintores de que Caio gosta.»

No cotejo entre as frases (2) e (3), verifica-se que é a elisão do verbo gostar na oração subordinada que leva à elisão da preposição de, regida pelo verbo, pelo que a frase apresentada em (2) está correta.

Disponha sempre!

Pergunta:

Creio que se usam muitas vezes os advérbios virtualmente e eventualmente incorretamente, como anglicismos. São-no, de facto?

Além do mais, o advérbio aparentemente será um galicismo? Sendo-o, quais são as alternativas?

Finalmente, peço-vos que, caso conheçam outros advérbios utilizados «à inglesa», «à francesa», «à espanhola» ou «à italiana», os deem a conhecer para, possivelmente, corrigir incorreções desapercebidas.

Bem hajam!

Resposta:

Os advérbios virtualmente e eventualmente não são anglicismos uma vez que formados no português a partir da junção do sufixo -mente aos respetivos adjetivos.

Não sendo anglicismo, todavia, o advérbio virtualmente pode ser usado com sentido anglicizante quando tem o valor de «de modo quase completo; praticamente total» (Dicionário Houaiss). O mesmo não se poderá dizer do advérbio eventualmente, que tem registos de uso com o valor de hipótese, possibilidade, desde o século XIX.

A palavra aparentemente, segundo o mesmo Dicionário Houaiss, tem usos registados desde o século XVII, pelo que também não constitui um estrangeirismo.

O Ciberdúvidas apresenta com frequência textos que refletem sobre anglicismos usados no léxico português. Deixo aqui alguns exemplos para consulta:

– "O enigma do ghosting nas relações modernas

 "Como ser bully em português?

 "A paixão, o amor, o namoro e tantas outras relações e ralações

A palavra <i>bastante</i>
Uma palavra associada a diferentes classes de palavras

A palavra bastante pode pertencer a diferentes classes de palavras, o que é explicado pela professora Carla Marques neste apontamento (divulgado no programa Páginas de Português, na Antena 2, dia 22 de janeiro de 2024).